Sunday, May 07, 2006

Chamei o paciente à porta, pelo nome. Sua expressão era severa, e tinha olhar vago, de quem parecia olhar para cenas que só ele via. De seus cinqüenta e poucos anos, parecia. Poucas eram as mudanças em seu rosto, como moldado a gesso em sua seriedade. Mais do que isso. Pele branca, de uma textura que lembrava cera, em tom pálido. Cabelos cheios, já acinzentados, com alguns fios brancos. Desgrenhados, um desleixo à sua figura. Bochechas fartamente preenchidas, com a queda natural dos anos, mas ainda mais. A falta de expressão de seu rosto tornava mais visíveis as saliências: as bochechas pareciam maiores, o queixo disforme, o nariz engordado, a testa riscada por rugas de expressão, que espalhavam-se largamente. A voz, grossa e rouca, saía em tom baixo. Homem de poucas palavras, poucos semblantes. Sentou-se, gravemente. Pachorrento, ocupou toda a cadeira. Era, com a cadeira, uma unidade. Imóvel em seus gestos, parecia parte do inanimado. A voz, de onde saísse, não parecia sair dele: ventríloquo, talvez. Pouco movia os lábios para falar, e os olhos permaneciam mirando um horizonte só seu. Não diria cabisbaixo: seu pescoço nem mesmo direcionava os moviementos da cabeça, como se desligados. O corpo acompanhava a imobilidade do rosto. Estava ali, e não estava. Suas falas quebravam o silêncio por segundos, respondendo a perguntas e calando-se, como escutando, num outro plano, as próprias histórias.
Interroguei, em anamnese, dados de identificação. Circense, falou, e rapidamente. Resposta seca, áspera. Com suave arrogância, que percebia-se pela impostação mais grave da voz. Como se fosse óbvio, estampado no rosto, o seu ofício. Título que parecia ser seu nome, sua idade, sua profissão, sua naturalidade e procedência, seu estado civil. Circense, repetiu, frente ao meu olhar perplexo. Um silêncio me paralisou, e escrevi em sua ficha, vagarosamente, aquela informação. Enquanto imaginava. Por segundos, me vi suspensa num ponto de interrogação, quase não acreditando, perscrutando sua figura. Circense? E completou: cômico. Cômico de circo. Me pus a olhar novamente aquele homem sentado ali. Busquei, em suas feições, algum dado que me remetesse a imagem de um cômico de circo. Palhaço, ele afirmou, talvez percebendo minha hesitação. Busquei em minhas memórias da infância a figura do palhaço de circo, e definitifamente não era aquela. Tentei imaginá-lo mais moço, no auge dos seus trinta e pouco, quarenta anos. Colocava sua figura nas memórias do domador de leões, mas não do palhaço. Isso, não. Continuava buscando, naquela imagem, resquícios do palhaço que fôra. Nem assim. Sondava, em sua máscara imóvel, minhas lembranças, como que querendo acreditar no inusitado que me afrontava, me surpreendia. E o homem seguiu respondendo os itens da anamnese formal, conforme eu o indagava. Nessas alturas, as questões médicas ficaram, pra mim, em segundo plano. Eu queria mesmo era saber a história do circo. Sentia uma curiosidade pungente em conhecer sua vida mambembe, suas peripécias, seu personagem. A história por trás daquela fisionomia. Histórias. Revelava trajetos, localidades, gentes. Tudo sob o pretexto da anamnese, que deixei de seguir formalmente. Escutava, apenas. Ali, era ele comandando o espetáculo. E disso, ele gostava. A atmosfera do picadeiro trouxe à consulta a tonalidade de suas reminiscências. Já modulava a voz, e no semblante já se desenhava algo parecido com alguém que um dia foi circence. Cômico, dizia ele, em tom sério, respeitoso, orgulhoso de si. Enquanto contava sua vida no circo, e a apresentação da queixa médica, eu mirabolava percursos, personagens outros, grandes tarde de circo, figuras do meu imaginário. Rodopiava com o paciente pelos giros do tempo, escutando sua voz num horizonte só meu, de imagens da lembrança e da fantasia. Me decepcionava, quando buscava nele um palhaço de circo que não conseguia enxergar. E foi então que, respondendo perguntas médicas, trouxe à sala uma nova identidade. Melancólico. E de circense passou a ex-palhaço, atual melancólico. Novos dados de história médica, e eu conseguia já alinhavar uma idéia mais verossímil da figura do homem, antes um estranho insólito pra mim. Não me sentia médica ali, mas expectadora de um ex-espetáculo. E, curiosa, persegui as peculiaridades de seu relato. Fidedigno, parecia. Mencionou suas mirabolantes movimentações na vida de circo, e atribuiu causas ao sofrimento atual. As causas: sua vida de circo. Mas isso demorou a dizer, como não podendo admitir. E referiu que tantas e tantas noites perdia, lembrando-se das vezes em que se atirara do Gobo da Morte, e do uso inconseqüente de suas forças físicas. Execução de sua profissão circense. Não só melancólico, mas irritado, doído em todo o corpo, lamentando e enaltecendo, paradoxalmente, seu personagem de circo. Apresentando, ali, a figura de quem foi, e não poode mais ser. Pelo tempo, pelas dores, pela falta de vontades. De tudo.
A história de um personagem-paciente, entremeada com a de um personagem ex-circense, num paradoxo. A personagem-médica, que abandonou o protocolo de anamnese formal para dar espaço à escuta da história por trás. A dele, e a minha, também. Buscando unir a figura daquele homem, sentado ali, com o que eu esperava de um ex-palhaço de circo. Não encontrando respostas, me vi criança, assistindo a qualquer coisa parecida com um espetáculo. Encerrei a consulta, dei-lhe boa tarde, apertando-lhe a mão. Chamei o próximo paciente.
Betina Mariante Cardoso

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