Wednesday, May 24, 2006

5 Anos de um conto
TIBÚRCIO

Há bom tempo quero contar do Tibúrcio... O dito começou rondando, disse seu nome, ficou pra contar um causo e outro. Passava horas assim, só tergiversando, ventos pra cá , passos pra lá. E eu sem saber o por quê daquela visitança toda , dum tal que ora e vez vinha se metendo nas minhas aragens...Mas deixei ficar, e tomou conta.Insistia que o trouxesse aqui. Bem que eu, no início, achei o homem estranho, mas era o jeito dele mesmo; foi quando deu-se uma estória sem cabimento que decidi contar...
Ele, meio mulato, de tez lustrada com brilho da terra,
compleição robusta, caminhar sem modos, mas um semblante tomado de lirismo, como se pudesse vislumbrar um além só seu. Difícil saber como essa magia podia caber em suas feições tão brutas, esculpidas em barro, com olhos, nariz e boca pouco delineados, riscos em todo rosto, cabelos mal penteados... Tibúrcio se fazia presente, não tanto pela voz, grossa e áspera, mas por sua figura:dava vontade ficar ali, ouvindo seu arar. E enquanto revolvia o solo, ía espalhando seu queimor por tudo, de modo que a friagem passava bem longe.
Vezes, vestia o ar macambúzio, olhava pro chão; outras, parecia se atirar nas pastagens distantes, quase apagadas pela lonjura. Tinha um segredo nos olhos, esprimiam-se, levando consigo bolsões de gordura, escondendo o sorriso ou o choro (disso ninguém sabia). Apertava a boca, quando ia contar um causo, esfregava o nariz, quando queria ficar sozinho, olhava de longe, vigiava de perto, mexia nas orelhas, esfregava a testa...Furungava a ferida do queixo, enquanto perscrutava a vida alheia. E era assim, homem de poucas palavras, quando não tinha nada pra dizer, e muitas, muitas, na hora de palpitar. De melhor, trazia um calor úmido, um conforto bom de sentir, um prosaico cru.
Pois que veio às minhas terras, em dia de chuvinha fina e frio cortante, pedir trabalho. Já veio dizendo que era bom de mexer em tudo, que ia cuidar dali. Que isso e aquilo. E disse que era de confiança...Eu deixei o coitado ficar - tão feio que era, mas inspirava coisa boa. E durou tantos tempos que já fazia parte da fazenda; sulcava a terra com os braços e o vento com os olhos, sabia de cada estória que a noite poderia contar.
Era gente de respeito por ali, e mais:tinha o cheiro dali.
Sempre parecia não ter contado alguma coisa. Tinha um risco do lado do olho esquerdo que se espichava, vezes, era quando queria contar...Então, olhava pra gente, de soslaio, o tal do risco se desmanchava e ele voltava pro campo. Isso se repetiu tantas vezes que, ao mínimo esboçar do risco, já sabíamos que poderia aquela ser a hora. Nunca foi. Tibúrcio era teimoso: se resolveu que não contaria, nos contentássemos com seus causos. Também era bem birrento, implicante e intrometido, quando batia um “vento ruim”.
A vida ia passando, e tudo sempre igual. Contávamos com ele pra tudo, e nossas noites esperavam por seus causos e cantorias. A voz grossa e áspera tomava-se de um rouco bom de ouvir, e, interrompido apenas pelo chimarrão e o cigarro de palha, postava-se a exibir feitos. Sentíamos o tempo passando através do incessante repetir das estórias, que ele cada vez contava de um jeito. Mas ficávamos ali todas noites, de todos os anos, adentrando terras aonde Tibúrcio nos levava, tempos idos e a idéia longínqua de nós mesmos.
Tornou-se o dono dali, por assim dizer.
De tempos pra cá, vinha me pedindo que contasse aqui sobre ele, e ficava dando voltas em volta de mim, seu risco do lado do olho esquerdo parecia saltar adiante e falar por ele... Dava passos surdos pela sala, mas eu podia sentir o cheiro da terra na sua sombra; sempre sabia quando Tibúrcio chegava. Andava estranho, mais macambúzio do que nunca, e nem causos contava mais. Sumia, vezes, e demorava dias pra voltar. Então, trazendo barro pra dentro de casa, voltava a me pedir que o trouxesse aqui. Preocupava-me, o Tibúrcio. Vez, sumiu tanto tempo que achamos que não voltaria mais; acabou aparecendo, com novos sulcos no rosto e os olhos ainda mais apertados – parecia não haver lugar para eles. Dali em diante nem falava quase, apenas sons guturais dizendo coisas que não se entendia. No então, seus olhos, espremidos, me perscrutavam, querendo entender o que eu fazia aqui, queria vir também...
Aquela época prolongou-se além do que imaginávamos. A fazenda perdia a cor, pouco a pouco, o silêncio gritava à noite e a friagem nos visitava com muita vontade, sem o queimor do Tibúrcio. O tempo, ah esse passava tão devagar que nos arrastava pelos dias. A casa, mal cuidada, sentia saudades dos passos dele por ali...Tínhamos um olhar cheio de interrogações e reticências, sem respostas. Sentíamos falta dos riscos no rosto do nosso “dono”, dos gestos que fazia em seu nariz, do seu andar sem modos. Mais ainda de seu semblante lírico em seu rosto de barro. Só quem não precisava sentir saudades era a terra da fazenda, quente e úmida, marrom lustrosa, com sulcos bem marcados...Que agora tinha oTibúrcio de volta.
Betina Mariante Cardoso
Maio/01

2 comments:

Lucas Fabbrin said...

Presta atenção. Eu não sei se este foi um post mesmo, ou um pedaço de outro texto teu. Digo porque tu tem que escrever e publicar isso. Gabriel Garcia Marquez de saia. Ou não. Decisão tua. Parabéns.

Betina Mariante Cardoso said...

Fico lisonjeada com o elogio do padrinho deste blog. Elogio e tanto, aliás.
Eu gosto do texto, também. Escrito em 20 de maio de 2001, numa tarde de sol. Claro...e o nome veio assim, natural. Tibúrcio. Só podia ser Tibúrcio.
Gracias.