(Um pouco de Literatura entre as páginas do Diário)
LOBO DO MAR
Bem longe dos lugares de areia que ficam perto do mar, e longe do horizonte mais próximo, parava o velho senhor. Não parecia estar em lugar algum, senão em sua própria fantasia, escondendo-se nas lembranças do velho navio. Ensimesmado, de casaco e chapéu pretos, botinas soturnas e barbas mais brancas do que o branco destas folhas, lá havia as sombras do louco mariante que fôra, um dia.
Com olheiras arroxeadas, rugas em todas as direções, bochechas caídas e lágrimas perenes, seu rosto poderia ser um daqueles velhos mapas que o leme consultara, outrora, buscando novos territórios. No “hoje”, o único espaço a sua disposição era a imaginação, recônditos onde encontrava o consigo mesmo que se perdera em águas distantes.
Dizem que o “Louco do Mar”, como era conhecido por aquelas bandas, ficou louco, mesmo. Seus olhos já nem olhavam mais, deleitando-se em paisagens que ningúem via; seus lábios não falavam, mas gritavam aos outros marujos; seu corpo flutuava por dentre as vestes, sentindo ainda respingos do mar...
Mas então, onde andaria o capitão de cores fortes e gênio arrojado, pronto a aventuras impensadas?
Tantas vezes esquecera-se de voltar ao mar, quando longos pileques e prostitutas no porto distraíam seus ponteiros do relógio. Amantes, as teve; era, contudo, homem de instantes, sem enlaces com recordações ou fisionomias, daí o gosto pela esbórnia. Contas penduradas, sons embriagados de insanidade e roupas de todas as cores: parecia mesmo carregar o sol dentro de si.
Longas eram as cantorias na madrugada, fazendo serenatas para a lua. Os sons das vozes roucas e do rolar das garrafas pelo chão de tabuões do navio, o gostoso barulhinho do mar e a melodia do vento faziam, daquelas horas sem rumo, tempos sem idade. Dos mapas- desenhados a lápis em sacos papel-pardo, de pão- tinha-se apenas idéia remota da próxima “terra-a-vista”. E lá, à deriva, naquele balanço constante por sobre as ondas, estavam os marujos, entre novos portos e novas ilhas.
Quantas tempestades, vendavais e alvoreceres atravessaram seus relógios; os homens, ainda assim, cantavam, dançavam e bebiam, mentindo tesouros e pescarias. Vozes embargadas em lembranças dos longos anos, fisionomias apagadas entre câmbios sucessivos de terras e mares e um navio, agora triste e cansado.
De tão cansado, vez, o leme enguiçou, trazendo o susto aos marujos. Tanto girou, por tanto tempo, em tantas as direções, que aposentou-se involuntariamente. Desrespeitaram seu sentido de orientação, ignoraram seu papel. Coitado do leme: sem saber para onde ir, estava sem bússola interna. E esse foi só o início.
Logo, o chão inaugurou sua derrocada. As tábuas passaram a ranger, pelo andar pesado dos homens, as danças e as bebedeiras, quando a agitação era ainda maior. Do ranger ao quebrar, foi um pulo, e aquele som de madeiras podres partindo-se ao meio, e o meio ao meio, tornou-se muuuuito maior do que as vozes dos marujos (que já eram bem altas). Então, por momento, eles calaram. E ouviram.
O mastro balançava-se, parecendo pedir ao céu que levasse embora a destruição; no entanto, cada vez mais, aquele balanço incomum ía prá lá e prá cá.
O vento cansara-se de fazer a côrte às velas desleixadas: a perda da vaidade trouxera rasgos e manchas àquelas que foram, por tempos, as damas do mar.
Tendo percebido tudo, os marujos desmancharam-se em um silêncio escuro, muito diferente do escuro daquelas madrugadas de danças, gritos e serenatas para a lua. A tristeza trouxe, aos seus rostos, aspecto de rochas onde as ondas estouram. As roupas coloridas acinzentaram-se, como anúncio de chuva que já chegou. A ousadia trouxe, em seu lugar, a perplexidade. O capitão, velho mariante de barbas brancas e sonhos de terras distantes, viu suas aventuras indo longe nas águas do mar.
Parou no próximo porto, para sua talvez última parada; deleitou-se na luxúria, escondendo-se em mulheres sem rostos e em uma embriaguez atônita. Viu, nas prostitutas, sereias dos mares de longe; nas garrafas de rum, a chegada de mensagens de novas terras. Embebido em memórias que o trago teima em borrar, pintou, em sua fantasia, histórias nunca acontecidas.
Em longos anos de parceria com os outros marujos, nunca se lembrou de estendê-la ao navio. Sem preocupação sobre seus sentimentos ou bem-estar; sem cuidados com aquele que era, em última instância, seu corpo. Para eles, só a boemia era a certeza: na inconseqüência do mar, não ouviam a sabedoria das madeiras. Queriam dele o sumo da boa-vida: de serenatas e noitadas às loucuras em novos caminhos, traçados no papel-pardo. Caminhos que eram seguidos ao sabor do vento ou da própria vontade.
Do navio, nunca lembravam; ele, por tempos, não reclamou. Os sinais da doença, no entanto, teimavam em aparecer, acenando notícias da morte vindoura. Enquanto isso, os lobos do mar imaginavam ir à eternidade, pensando-se imortais em suas aventuras. Não foram.
Assim do regresso ao mar, após a última visita ao porto, as próximas noites foram infestadas de inferno. Cada momento, maior o som do quebrar das madeiras e, no debater dos seus pedaços, o lento fim do navio. O velho marujo, capitão, conheceu da “pedra-fundamental” à derrocada, quando recolheu os destroços, um a um, dispondo-os na enseada.
Construiu ali, onde as ondas na areia chegam a tocar-lhe os pés, uma cabana. Foi trazendo cada madeira de lá para cá, sem pedaços de umas, sem outras inteiras. Montou seu navio em terra, e o leme foi na frente, guiando as aventuras do louco do mar.
Dia, porém, na calada da manhã, no além da arrebentação, lá foi a velha cabana, levada pela maré. Bem longe dos lugares de areia que ficam perto do mar, e longe do horizonte mais próximo... Gritos de homens, garrafas rolando no barulho das ondas e a brisa, brisando. O velho senhor, na beira do seu mar, assistia a tudo, despedindo-se de si mesmo.
Bem longe dos lugares de areia que ficam perto do mar, e longe do horizonte mais próximo, parava o velho senhor. Não parecia estar em lugar algum, senão em sua própria fantasia, escondendo-se nas lembranças do velho navio. Ensimesmado, de casaco e chapéu pretos, botinas soturnas e barbas mais brancas do que o branco destas folhas, lá havia as sombras do louco mariante que fôra, um dia.
Com olheiras arroxeadas, rugas em todas as direções, bochechas caídas e lágrimas perenes, seu rosto poderia ser um daqueles velhos mapas que o leme consultara, outrora, buscando novos territórios. No “hoje”, o único espaço a sua disposição era a imaginação, recônditos onde encontrava o consigo mesmo que se perdera em águas distantes.
Dizem que o “Louco do Mar”, como era conhecido por aquelas bandas, ficou louco, mesmo. Seus olhos já nem olhavam mais, deleitando-se em paisagens que ningúem via; seus lábios não falavam, mas gritavam aos outros marujos; seu corpo flutuava por dentre as vestes, sentindo ainda respingos do mar...
Mas então, onde andaria o capitão de cores fortes e gênio arrojado, pronto a aventuras impensadas?
Tantas vezes esquecera-se de voltar ao mar, quando longos pileques e prostitutas no porto distraíam seus ponteiros do relógio. Amantes, as teve; era, contudo, homem de instantes, sem enlaces com recordações ou fisionomias, daí o gosto pela esbórnia. Contas penduradas, sons embriagados de insanidade e roupas de todas as cores: parecia mesmo carregar o sol dentro de si.
Longas eram as cantorias na madrugada, fazendo serenatas para a lua. Os sons das vozes roucas e do rolar das garrafas pelo chão de tabuões do navio, o gostoso barulhinho do mar e a melodia do vento faziam, daquelas horas sem rumo, tempos sem idade. Dos mapas- desenhados a lápis em sacos papel-pardo, de pão- tinha-se apenas idéia remota da próxima “terra-a-vista”. E lá, à deriva, naquele balanço constante por sobre as ondas, estavam os marujos, entre novos portos e novas ilhas.
Quantas tempestades, vendavais e alvoreceres atravessaram seus relógios; os homens, ainda assim, cantavam, dançavam e bebiam, mentindo tesouros e pescarias. Vozes embargadas em lembranças dos longos anos, fisionomias apagadas entre câmbios sucessivos de terras e mares e um navio, agora triste e cansado.
De tão cansado, vez, o leme enguiçou, trazendo o susto aos marujos. Tanto girou, por tanto tempo, em tantas as direções, que aposentou-se involuntariamente. Desrespeitaram seu sentido de orientação, ignoraram seu papel. Coitado do leme: sem saber para onde ir, estava sem bússola interna. E esse foi só o início.
Logo, o chão inaugurou sua derrocada. As tábuas passaram a ranger, pelo andar pesado dos homens, as danças e as bebedeiras, quando a agitação era ainda maior. Do ranger ao quebrar, foi um pulo, e aquele som de madeiras podres partindo-se ao meio, e o meio ao meio, tornou-se muuuuito maior do que as vozes dos marujos (que já eram bem altas). Então, por momento, eles calaram. E ouviram.
O mastro balançava-se, parecendo pedir ao céu que levasse embora a destruição; no entanto, cada vez mais, aquele balanço incomum ía prá lá e prá cá.
O vento cansara-se de fazer a côrte às velas desleixadas: a perda da vaidade trouxera rasgos e manchas àquelas que foram, por tempos, as damas do mar.
Tendo percebido tudo, os marujos desmancharam-se em um silêncio escuro, muito diferente do escuro daquelas madrugadas de danças, gritos e serenatas para a lua. A tristeza trouxe, aos seus rostos, aspecto de rochas onde as ondas estouram. As roupas coloridas acinzentaram-se, como anúncio de chuva que já chegou. A ousadia trouxe, em seu lugar, a perplexidade. O capitão, velho mariante de barbas brancas e sonhos de terras distantes, viu suas aventuras indo longe nas águas do mar.
Parou no próximo porto, para sua talvez última parada; deleitou-se na luxúria, escondendo-se em mulheres sem rostos e em uma embriaguez atônita. Viu, nas prostitutas, sereias dos mares de longe; nas garrafas de rum, a chegada de mensagens de novas terras. Embebido em memórias que o trago teima em borrar, pintou, em sua fantasia, histórias nunca acontecidas.
Em longos anos de parceria com os outros marujos, nunca se lembrou de estendê-la ao navio. Sem preocupação sobre seus sentimentos ou bem-estar; sem cuidados com aquele que era, em última instância, seu corpo. Para eles, só a boemia era a certeza: na inconseqüência do mar, não ouviam a sabedoria das madeiras. Queriam dele o sumo da boa-vida: de serenatas e noitadas às loucuras em novos caminhos, traçados no papel-pardo. Caminhos que eram seguidos ao sabor do vento ou da própria vontade.
Do navio, nunca lembravam; ele, por tempos, não reclamou. Os sinais da doença, no entanto, teimavam em aparecer, acenando notícias da morte vindoura. Enquanto isso, os lobos do mar imaginavam ir à eternidade, pensando-se imortais em suas aventuras. Não foram.
Assim do regresso ao mar, após a última visita ao porto, as próximas noites foram infestadas de inferno. Cada momento, maior o som do quebrar das madeiras e, no debater dos seus pedaços, o lento fim do navio. O velho marujo, capitão, conheceu da “pedra-fundamental” à derrocada, quando recolheu os destroços, um a um, dispondo-os na enseada.
Construiu ali, onde as ondas na areia chegam a tocar-lhe os pés, uma cabana. Foi trazendo cada madeira de lá para cá, sem pedaços de umas, sem outras inteiras. Montou seu navio em terra, e o leme foi na frente, guiando as aventuras do louco do mar.
Dia, porém, na calada da manhã, no além da arrebentação, lá foi a velha cabana, levada pela maré. Bem longe dos lugares de areia que ficam perto do mar, e longe do horizonte mais próximo... Gritos de homens, garrafas rolando no barulho das ondas e a brisa, brisando. O velho senhor, na beira do seu mar, assistia a tudo, despedindo-se de si mesmo.
Betina Mariante Cardoso
maio/00
maio/00









