Wednesday, May 31, 2006

(Um pouco de Literatura entre as páginas do Diário)
LOBO DO MAR

Bem longe dos lugares de areia que ficam perto do mar, e longe do horizonte mais próximo, parava o velho senhor. Não parecia estar em lugar algum, senão em sua própria fantasia, escondendo-se nas lembranças do velho navio. Ensimesmado, de casaco e chapéu pretos, botinas soturnas e barbas mais brancas do que o branco destas folhas, lá havia as sombras do louco mariante que fôra, um dia.
Com olheiras arroxeadas, rugas em todas as direções, bochechas caídas e lágrimas perenes, seu rosto poderia ser um daqueles velhos mapas que o leme consultara, outrora, buscando novos territórios. No “hoje”, o único espaço a sua disposição era a imaginação, recônditos onde encontrava o consigo mesmo que se perdera em águas distantes.
Dizem que o “Louco do Mar”, como era conhecido por aquelas bandas, ficou louco, mesmo. Seus olhos já nem olhavam mais, deleitando-se em paisagens que ningúem via; seus lábios não falavam, mas gritavam aos outros marujos; seu corpo flutuava por dentre as vestes, sentindo ainda respingos do mar...
Mas então, onde andaria o capitão de cores fortes e gênio arrojado, pronto a aventuras impensadas?
Tantas vezes esquecera-se de voltar ao mar, quando longos pileques e prostitutas no porto distraíam seus ponteiros do relógio. Amantes, as teve; era, contudo, homem de instantes, sem enlaces com recordações ou fisionomias, daí o gosto pela esbórnia. Contas penduradas, sons embriagados de insanidade e roupas de todas as cores: parecia mesmo carregar o sol dentro de si.
Longas eram as cantorias na madrugada, fazendo serenatas para a lua. Os sons das vozes roucas e do rolar das garrafas pelo chão de tabuões do navio, o gostoso barulhinho do mar e a melodia do vento faziam, daquelas horas sem rumo, tempos sem idade. Dos mapas- desenhados a lápis em sacos papel-pardo, de pão- tinha-se apenas idéia remota da próxima “terra-a-vista”. E lá, à deriva, naquele balanço constante por sobre as ondas, estavam os marujos, entre novos portos e novas ilhas.
Quantas tempestades, vendavais e alvoreceres atravessaram seus relógios; os homens, ainda assim, cantavam, dançavam e bebiam, mentindo tesouros e pescarias. Vozes embargadas em lembranças dos longos anos, fisionomias apagadas entre câmbios sucessivos de terras e mares e um navio, agora triste e cansado.
De tão cansado, vez, o leme enguiçou, trazendo o susto aos marujos. Tanto girou, por tanto tempo, em tantas as direções, que aposentou-se involuntariamente. Desrespeitaram seu sentido de orientação, ignoraram seu papel. Coitado do leme: sem saber para onde ir, estava sem bússola interna. E esse foi só o início.
Logo, o chão inaugurou sua derrocada. As tábuas passaram a ranger, pelo andar pesado dos homens, as danças e as bebedeiras, quando a agitação era ainda maior. Do ranger ao quebrar, foi um pulo, e aquele som de madeiras podres partindo-se ao meio, e o meio ao meio, tornou-se muuuuito maior do que as vozes dos marujos (que já eram bem altas). Então, por momento, eles calaram. E ouviram.
O mastro balançava-se, parecendo pedir ao céu que levasse embora a destruição; no entanto, cada vez mais, aquele balanço incomum ía prá lá e prá cá.
O vento cansara-se de fazer a côrte às velas desleixadas: a perda da vaidade trouxera rasgos e manchas àquelas que foram, por tempos, as damas do mar.
Tendo percebido tudo, os marujos desmancharam-se em um silêncio escuro, muito diferente do escuro daquelas madrugadas de danças, gritos e serenatas para a lua. A tristeza trouxe, aos seus rostos, aspecto de rochas onde as ondas estouram. As roupas coloridas acinzentaram-se, como anúncio de chuva que já chegou. A ousadia trouxe, em seu lugar, a perplexidade. O capitão, velho mariante de barbas brancas e sonhos de terras distantes, viu suas aventuras indo longe nas águas do mar.
Parou no próximo porto, para sua talvez última parada; deleitou-se na luxúria, escondendo-se em mulheres sem rostos e em uma embriaguez atônita. Viu, nas prostitutas, sereias dos mares de longe; nas garrafas de rum, a chegada de mensagens de novas terras. Embebido em memórias que o trago teima em borrar, pintou, em sua fantasia, histórias nunca acontecidas.
Em longos anos de parceria com os outros marujos, nunca se lembrou de estendê-la ao navio. Sem preocupação sobre seus sentimentos ou bem-estar; sem cuidados com aquele que era, em última instância, seu corpo. Para eles, só a boemia era a certeza: na inconseqüência do mar, não ouviam a sabedoria das madeiras. Queriam dele o sumo da boa-vida: de serenatas e noitadas às loucuras em novos caminhos, traçados no papel-pardo. Caminhos que eram seguidos ao sabor do vento ou da própria vontade.
Do navio, nunca lembravam; ele, por tempos, não reclamou. Os sinais da doença, no entanto, teimavam em aparecer, acenando notícias da morte vindoura. Enquanto isso, os lobos do mar imaginavam ir à eternidade, pensando-se imortais em suas aventuras. Não foram.
Assim do regresso ao mar, após a última visita ao porto, as próximas noites foram infestadas de inferno. Cada momento, maior o som do quebrar das madeiras e, no debater dos seus pedaços, o lento fim do navio. O velho marujo, capitão, conheceu da “pedra-fundamental” à derrocada, quando recolheu os destroços, um a um, dispondo-os na enseada.
Construiu ali, onde as ondas na areia chegam a tocar-lhe os pés, uma cabana. Foi trazendo cada madeira de lá para cá, sem pedaços de umas, sem outras inteiras. Montou seu navio em terra, e o leme foi na frente, guiando as aventuras do louco do mar.
Dia, porém, na calada da manhã, no além da arrebentação, lá foi a velha cabana, levada pela maré. Bem longe dos lugares de areia que ficam perto do mar, e longe do horizonte mais próximo... Gritos de homens, garrafas rolando no barulho das ondas e a brisa, brisando. O velho senhor, na beira do seu mar, assistia a tudo, despedindo-se de si mesmo.
Betina Mariante Cardoso
maio/00

Tuesday, May 30, 2006

...Interrompo meu Diário Pisano com novos planos de viagem. Só por hoje. Edimburgo soou como surpresa, mas não susto. Sobrevoar a Escócia com a imaginação, imaginar novos ventos, novos dias de sol em ruas que não conheço.Caminhar por ruas que não conheço, de uma cidade que não conheço, com um estado de ânimo que não conheço. Agora, sem sustos. Já conheço o mapa, já vi o caminho entre o B&B e o Centro de Conferências. 15 minutos a pé, disse a Susie, do B&B. Os outros caminhos descubro por lá, nos belos dias de sol que vêm pela frente. Estou feliz.Sempre um brinde!
Torno a Pisa, no incessante Diário do Giugno Pisano.
Betina Mariante Cardoso
31/05/2006, em Porto Alegre.
Adendo- Vida Prática em Pisa
31/05/2004
Segunda-feira
Manhã: Fiz o seguro. Pronto só amanhã à tarde.Caminhei até o Ospedale Santa Chiara, descobri a entrada pra Psichiatria- Via roma-Via Savi-Via Bonano.
Almoço na Pizzaria Roma. Sensação de acolhimento, de boa disposição.Vejo os próximos cardápios do período.
Tarde:Uffizio Informazioni
(...) A chuva choveu diferente quando vi o Lungarno sob nova luz. Chovi num cenário que não tinha visto, ainda. Pisa é uma cidade que muda de cenário e de cor. Pisa choveu, eu chovi, a chuva choveu. O frio fez com que eu trouxesse jantinha pra casa. Nova sensação:
LAVAR A LOUÇA NO MEU AP!!!
Penso na lista de compras, pra sujar várias louças no período, com as mais variadas gulodices.
A chuva trouxe uma cara de rotina.De jantar em casa. De dia normal. Espero dormir bem, hoje.
Lista de Compras
-Cerejas
-Iogurte
-Pão fatiado
-Presunto
-Tomate
-Rúcula
- Mussarela Buffalo
-Vinagre Balsamico
-Pano de Prato
-Suco de Laranja
Horários de Pisa
9:00-13:00: Apre!
13:00-16:00:Chiude!
16:00-20:00: Apre...
20:00:Chiude!!!!

Monday, May 29, 2006









30/05/04
- 01:30-Dúvidas sobre o trem.

-15:33, em Firenze, já tendo passado pela Santa maria Novella, Ponte Vechio, Fiume Arno, Lungarni, Uffizzi, lojinha de papéis. Entro, pela Uffizzi, na Piazza della Signoria, talvez o ponto mais feliz da cidade pra mim.Estou aqui, depois de todas as dúvidas, aflições, conjeturas. É só vir, aprendi. Minha pizza chegou. Pizza alle Verdure, e uma taça de vinho branco, de tal suavidade que fiquei quase, ou sim, e definitivamente, em outra dimensão...Olho essa tarde de sol, esse calorzinho, a Piazza della Signoria, essa mesa veramente italiana, e me sinto quase num estado ideal. Paz. Agora, nenhum fantasma me assombra. Uma sensação inédita num cenário muito peculiar. Aqui estou, só a passeio, sem nenhuma pretensão de atravessar filas.Venho pra um passeio de domingo, uma tarde de sol, uma caminhada. Cenas tão belas que fotografo no meu arquivo particular de memórias soltas, que busco aqui e ali quando volto pra vida real. Nem todas as fotos que vejo fotografo...Aquelas tradicionais, sim. Fotografo aqui essa felicidade de uma tarde de sol em Firenze.
29/05/2006.

Me encontro, há dois anos atrás. E atravesso a Ponte di Mezzo várias vezes, em tantos trajetos que até me perco. Refaço caminhos, e escuto sons de antes. Um diário reescrito, passado a limpo, com dois anos de intervalo. Uma releitura estranha, com os olhos de agora. Era medo de atravessar o Lungarno?De chegar à estação? Era medo de ir a lugares desconhecidos, de me aventurar em estar ali? Era medo. Fui indo, e a cada dia um pouco. Hoje refaço aqueles trajetos, que pareciam distantes. Era só pegar o trem, e ir descobrindo como me perder e me achar. Era só caminhar. Atravessar a Ponte di Mezzo era muito mais do que atravessar, mas alcançar lugares fundamentais, como a Feltrinelli do Corso Italia, a Estação, o Correio, onde até nem retornei. As ruas estreitas a serem descobertas. A Estação e os Trens. O Ônibus pra Lucca, e tantos endereços desnecessários, bons de visitar. Reaprendi a sair caminhando, sem propósito. Um chamamento a conhecer, explorar. Foi só encontrar um lugar seguro pra atravessar, e dali em diante atravessei a Ponte di Mezzo todos os dias. E foi por onde vivi todas as peripécias, fotografias, memórias. Atravesso ainda hoje, e vou caminhando. Refazer o trajeto por escrito, com a lembrança do que exatamente me desafiava. Reolhar, com dois anos de intervalo. E atravessar de novo a Ponte di mezzo, fazendo novos trajetos. A Estação, depois do outro Lungarno, e todas as cidades onde queria ir, de trem. Era medo de atravessar a Ponte di Mezzo?
29/05/2004
9:15...11:15...12:00...Perdi o café...Penso em almoçar bem, hoje!
Saio de casa, lembro de uma Osteria na Piazza del Vettovaglie...A primeira imagem é o Lungarno, com sol. Aquela sensação gostosa do calor e da luz do sol batendo nos meus medos. Vou caminhando, sacudo a cabeça e sacudo de novo. Ainda o sol. Entro na Osteria. Ocupo uma mesa de frente pra porta, umas três mesas pra dentro do restaurante. Uma cantininha típica, com uma musica com tom novaiorquino tocando...Lá fora, passando carrocinhas de frutas, muitas bicicletas e os meus pensamentos...Fico olhando pra rua, numa confusão entre a música e as bicicletas, naquele cenário tipicamente italiano. Eu, ali, personagem do meu cenário confuso. Mas muito, muito memorável. Vontade de ficar em silêncio, vontade de olhar ali pra dentro, vontade de olhar pra fora. Aquelas bicicletas são sensacionais...cada uma me surpreende...Pelo inusitado das senhoras de vestido e cabelos brancos, e senhores de terno e maletas andando de bicicleta por aí.
O almoço foi bom. Foi meu. Entrei na atmosfera ítalo-novaiorquina e, servida por um cara muito parecido com o do filme Harry and Sally, tive dúvidas sobre estar ou não em Nova Iorque...Minha imponente taça de Chianti me mantinha na Toscana. Entrei ali pelo Gnocchi, já que é dia 29. Hoje, justamente, gnocchi não tinha. Com a sobremesa apimentada, um vinho doce, advertia o moço aquele parecido com o do filme. Momento inesquecível. Momento aquele merecia um amor pra pensar. Mas eu pensei sobre estar em Pisa, ir à estação, atravessar a Ponte di mezzo pro outro lado. E fui. Descobri como atravessar e fui indo. algo no caminho à Estação me afrontou, e não pude passar dali. Uma livraria. De sonho. Tantos livros, vários pequenos andares, divididos por dois ou três degraus. Lá atrás, um pátio. No entanto, o desafio de chegar à Estação me fincava, e com aquela dorzinha pungente da dúvida e do desejo, lá fui eu...Fui indo, e entrei no prédio errado. Foi assim que eu descobri o Correio!
(É assim que as coisas funcionam com quem não conhece a cidade...)
Descobrir por acaso lugares que teríamos procurado...bem mais divertido...E se chega, afinal.
Cheguei à Estação.
(...)
Vista a Estação, plenejados os próximos trens, comecei a retornar. Caminhando, descobri outras diversas coisas. Entrei, sem saber o que era, no Palazzo Gambacorti, ainda no trajeto de ida. Ida e vinda se confundem, fazendo parte do mesmo passeio. A vinda é tão longa e viva que torna-se ida. Me dirijo a algum lugar, mas pareço estar apenas zanzando. Me aventuro nas entradinhas com arcos que, quando vejo, são novas ruas. E pequenas praças, por toda parte. Passo por uma livraria de Enologia, Turismo e Gastronomia. Descubro o Slow Food. Semana que vem, toda a semana de eventos e degustações, de 05/06 a 15/06. Volto ali.
(...)
Já é fim de tarde. Noite.
Não consigo dormir cedo. Este quarto é grande, alto e aconchegante. Gosto de estar acordada aqui. O cenário é tão peculiar, que dormir é apagar a luz.
Já vou.
Ficam aqui as ruas curvas com arcos, o contraste das bicicletas lá fora com o tom novaiorquino da música, a taça de Chianti, o Slow food, e um tudo que fica, de mais um dia do início.
Betina

Sunday, May 28, 2006

Relato do dia 28/05, no dia seguinte, por email
"Aqui, 13:10.
Hoje dormi até o meio-dia...Tinha um sono...
Ontem fui jantar na casa da Valéria com ela e o marido, e um casal de brasileiros. Estava muito bom. Levei um vinho e um panforte. E ontem o dia foi bem divertido:fui no hospital, é como um parque hospitalar, muito diferente.Todos os departamentos têm seu prédio, e por tudo muitas árvores.
Tive que ir até outro posto da Azienda Ospedaliera, e pra isso peguei um taxi, era mais longe e aqui tudo fecha (é verdade!!!) da uma às quatro da tarde, e era quase uma...Na volta desse lugar fui me perdendo, praticamente de propósito, pra encontrar lugares novos...Caminhei bastante, me diverti bastante nas redondezas...Ainda não estou com coragem de me estender muito pela cidade e pelas cidades vizinhas, mas como conheço meu ritmo...devagarzinho, não vou me apressar. Sei que, quando vi, já vou ter ido a Florença, Siena e outros belos lugares. Por enquanto estou me adonando da vizinhança, conhecendo onde estão as coisas, os lugares, os eventos. Hoje vou procurar um evento interessante pra ir, e amanhã vejo se acho um passeio interessante. Tenho dormido bastante de manhã, cansada ainda..."

Caffè Dell´Ussero

28/05/2004
10:15- acordei...
10:30- Caffè dell´Ussero
11:05- Saio para a Azienda Ospedaliera
Hoje: -ver excursões pela Toscana- No outro lado da Ponte di Mezzo...
-ver emails: Via Carducci, depois do estreitamento
Fui à Via Zameroff, depois de conhecer a Azienda Ospedaliera (um parque horpitalar...). Peguei um taxi, cheguei à administração, coisas de papéis. Resolvidas as questões burocráticas, saí caminhando, pra me perder. Já estava indo pro lado contrário do centro, quando mudei a direção...Entrei numa rua, ou melhor...segui o sentido contrário pela mesma rua...Não sabia onde estava, nem quão distante do centro...Perguntei várias vezes, pra várias pessoas, sem fazer nenhuma força pra entender. Queria me perder. Continuei caminhando, sabendo que se perder numa cidade estranha, ainda estranha, é a graça. O encanto está em se perder. Na verdade, quer dizer conhecer a pé o desenho do mapa...Caminhei...Cheguei ao Centro, tendo encontrado lugares incríveis nas ruas em que me perdi.
À tarde, um tramezzino com yogurt num Café do Borgo Stretto. Depois, um caffè con Baci no Caffè Sant´Anna. Caminhei, girei, parei, pensei. E caminhei de novo. Combinei janta com Valéria e Daniel, comprei um panforte e Chianti pra levar. Janta ótima, com os brasileiros em Pisa. A Valéria e o Daniel, a Cristina e o Fábio, e eu. Penne al Pesto.
Volto pra casa. Um pouco de pânico. Me paralizo pelo calendário de lazer a ser cumprido.Onde vou por primeiro? E se não conseguir pegar o trem...Vontade de gritar. Ficar sozinha, me divertir sozinha, pensar sozinha. Atravessar a ponte, pro outro Lungarno, onde estão tantas coisas onde devo ir. Onde está a sinaleira? Onde fica a Stazione? Já foi ontem essta pergunta, mas me lembro da sensação.É hoje, ainda. Senti hoje, outra vez. Somos muitas aqui, gritando pela cidade.
Do que é que dá medo, mesmo?
Vertigem...
Dramin.
Fui dormir, pra acordar.
Betina mariante Cardoso

Thursday, May 25, 2006

Definitivamente, sou uma criatura do dia. Do dia de sol. E hoje, em meio a tantas turbulências, rememoro os dias de sol que me fizeram olhar pro céu muito azul e me reencontrar. Dias de céu como hoje. De sol. Sempre acontece de parecer que estou caminhando pelo Lungarno Pacinotti numa hora dessas, em que sinto o calorzinho do sol. Satisfeita, feliz. Indo a lugar nenhum. Olhando a Ponte di Mezzo, sentindo a atmosfera do Lungarno dentro de mim. A tarde da Luminara, aqueles balões coloridos, todos os personagens enfeitando a cidade, colocando velas nas janelas, aquelas barracas de doces. A Regata di SanRanieri, numa tarde de sol. Só pode ser numa tarde de sol. Sentia uma plenitude cada vez que parava entre a via Roma e o Lungarno, olhava os vários tons de sol daquela faixa de prédios em tons pastéis, um contraste rico, uma sensação de leveza. Meus olhos guardam a sensação do Lungarno, guardam a sensação das tardes de sol. Das manhãs de sol até o hospital, caminhando lentamente, escutando a cidade amanhecer. De um sol que vi em Siena, em Lucca, naquele coffe break insuperável, nos passeios sem mapa pelas cidades. Do Sol em San Gimigniano, um sol já indo embora, mas ainda lá. Do sol em mim, quando me sentia chovendo. Do sol no Giardino di Bobboli, em Florença, uma tarde de sol que me capturou. Do sol em lusco-fusco, naquele transe turístico do almoço de Florença: a Piazza della Signoria, eu, a pizza alle verdure, a taça de vinho, o pão, e o sol. Sempre o sol. Do sol nos passeios por Pisa, do sol entrando pela janela enquanto eu desfolhava o manjericão. Nesguinha de sol, mas a sensação do sol na sala, da janela alta, e da mesa. A claridade do sol que vai indo. Mas que fica numa lembrança ensolarada de desfolhar manjericão. A sensação de sair pela rua, entrar numa delicatessen, comprar ingredientes, guardar na sacola e sair, pelo sol. De ir na feira,e escolher de tudo, cerejas, tomates, rúcula, e sol. Um passeio por nós mesmos, pela rua da feira de antiguidades, que começa na Piazza dei Cavallieri e termina na via Santa Maria. E o sol. Sempre o sol. Chegar na villa Bottini, em Lucca, com sol. Gravuras que ficam, e estão. São nossas, sempre sob o sol. Aproveitar o dia, com sol. Em nós, que seja. O ensolarado de um tempo, que a cada novo sol ressurge, como a nova cena, revisitada. Cada dia de sol é um pouco um dia de Lungarno, pra mim. Houve um tempo em que olhava pro céu azul de sol e imaginava como estaria o céu do lungarno naquele momento. Azul. Pisa, olhada de dentro do caffè dell´Ussero, nas primeiras horas da manhã. Un lungo Americano e un budino di riso, olhando o sol pela porta. Pisa tem disso. Dos dias de sol em Porto alegre já falei, há uns posts atrás. Aqui, meu diário Pisano. Lembranças vivas, dois anos depois. Vivas pelo sol do Lungarno, que me faz serenar, pisco e abro novamento o olhar, é um passo adiante com os olhos. Um passo pra dentro, pra olhar o sol. Como hoje, em Porto alegre.
Betina Mariante Cardoso
25 maio 2006.

(...) Vôo Roma-Pisa

Um vôo muito difícil. A vertigem da língua, do fuso horário, do sono louco dos últimos dias e da mudança de tudo. Tudo me girou, girou, girou.
Vim pra Pisa não em linha reta, mas em círculos que me rodopiavam em torno de mim mesma, como produzindo inúmeras imagens caleidoscópicas. Cheguei, entrei no taxi. Vim ao Relais dell´Ussero. Uma estranheza quando cheguei. Um desespero. Nenhuma indicação além de uma plaquinha ao lado de uma porta que não abria, a informação de que o prédio é, na verdade, um condomínio, a ausência de tudo e de todos. Por um momento pensei que tudo teria sido um mal entendido, e que nunca teria existido um Relais dell´Ussero. Só impressão.
Logo a Rosanna Genovese chegou, me apresentou o apartamento. Alto, elegante, inicialmente impessoal...Nada como eu tinha imaginado, e sem qualquer janela pro Arno... Dormi, dormi, dormi. Acordei. Ao descer, senti o que é estar na frente do Arno! Sentei no Caffè dell´Ussero, porque muito sonhara com o momento em que sentaria ali, comi un Valdostanna de Espinafre com ricota, e tomei uma coca-cola. Saí a caminhar, sem destino., só caminhando de uma rua a utra, entrando e saindo de lugares, perdendo o medo aos poucos e ganhando força nos passos.Várias delicatessens, vários tipos estranhos, varias ruas estreitas. Várias de mim, eu ausente e eu em evidência. Eu aqui. "Uno, Nessuno e Centomilla" seria o nome do passeio de hoje. Ninguém me via, por ora; noutro momento, sentia estranheza em quem me olhasse, como sabendo de minha condição de estrangeira sozinha na cidade. Por vezes, me sentia tão igual a todos que me misturava naqueles tipos estranhos. À noite, arrumei a casa. me botei aqui, me trouxe pora cá, arrumei as roupas na cômoda, os livros na estante. Girei, agora sem vertigem. De feliz.
maio2004
CENA UM
Um vôo fora de Hora
Adiantado
De surpresa
Pirandello
Uno, Nessuno, Centomilla
Sono
Silêncio
Pirandello
Um longe Esperado que fica perto
Eu, sentada entre duas poltronas
No meio
Peço um café
Vou ler Pirandello...depois.
Agora, o silêncio.
Turbulência
E o café?
Eu, turbulenta?
Uso o Pirandello pra apoiar a folha.
Quietas. Eu. A folha.
Parece que passou a turbulência.
Mas o café...
Não me pergunto se ainda virá
Eu estarei.
Tomando cafés.
...se começar agora, leio Pirandello até amanhã...
À frente, uma conversa.
Aquele sono de antes...
Parece que pra decolar de mim.
Passou.
E a turbulência calmou.
O café já veio.
Posso recomeçar o Pirandello.
Até depois...
25/05/2004, 17hs.
Betina Mariante Cardoso

Wednesday, May 24, 2006


Lungarni di Pisa


Diários de Pisa

Registros do Giugno Pisano

25 de maio de 2004- Capítulo primeiro

Betina Mariante Cardoso

5 Anos de um conto
TIBÚRCIO

Há bom tempo quero contar do Tibúrcio... O dito começou rondando, disse seu nome, ficou pra contar um causo e outro. Passava horas assim, só tergiversando, ventos pra cá , passos pra lá. E eu sem saber o por quê daquela visitança toda , dum tal que ora e vez vinha se metendo nas minhas aragens...Mas deixei ficar, e tomou conta.Insistia que o trouxesse aqui. Bem que eu, no início, achei o homem estranho, mas era o jeito dele mesmo; foi quando deu-se uma estória sem cabimento que decidi contar...
Ele, meio mulato, de tez lustrada com brilho da terra,
compleição robusta, caminhar sem modos, mas um semblante tomado de lirismo, como se pudesse vislumbrar um além só seu. Difícil saber como essa magia podia caber em suas feições tão brutas, esculpidas em barro, com olhos, nariz e boca pouco delineados, riscos em todo rosto, cabelos mal penteados... Tibúrcio se fazia presente, não tanto pela voz, grossa e áspera, mas por sua figura:dava vontade ficar ali, ouvindo seu arar. E enquanto revolvia o solo, ía espalhando seu queimor por tudo, de modo que a friagem passava bem longe.
Vezes, vestia o ar macambúzio, olhava pro chão; outras, parecia se atirar nas pastagens distantes, quase apagadas pela lonjura. Tinha um segredo nos olhos, esprimiam-se, levando consigo bolsões de gordura, escondendo o sorriso ou o choro (disso ninguém sabia). Apertava a boca, quando ia contar um causo, esfregava o nariz, quando queria ficar sozinho, olhava de longe, vigiava de perto, mexia nas orelhas, esfregava a testa...Furungava a ferida do queixo, enquanto perscrutava a vida alheia. E era assim, homem de poucas palavras, quando não tinha nada pra dizer, e muitas, muitas, na hora de palpitar. De melhor, trazia um calor úmido, um conforto bom de sentir, um prosaico cru.
Pois que veio às minhas terras, em dia de chuvinha fina e frio cortante, pedir trabalho. Já veio dizendo que era bom de mexer em tudo, que ia cuidar dali. Que isso e aquilo. E disse que era de confiança...Eu deixei o coitado ficar - tão feio que era, mas inspirava coisa boa. E durou tantos tempos que já fazia parte da fazenda; sulcava a terra com os braços e o vento com os olhos, sabia de cada estória que a noite poderia contar.
Era gente de respeito por ali, e mais:tinha o cheiro dali.
Sempre parecia não ter contado alguma coisa. Tinha um risco do lado do olho esquerdo que se espichava, vezes, era quando queria contar...Então, olhava pra gente, de soslaio, o tal do risco se desmanchava e ele voltava pro campo. Isso se repetiu tantas vezes que, ao mínimo esboçar do risco, já sabíamos que poderia aquela ser a hora. Nunca foi. Tibúrcio era teimoso: se resolveu que não contaria, nos contentássemos com seus causos. Também era bem birrento, implicante e intrometido, quando batia um “vento ruim”.
A vida ia passando, e tudo sempre igual. Contávamos com ele pra tudo, e nossas noites esperavam por seus causos e cantorias. A voz grossa e áspera tomava-se de um rouco bom de ouvir, e, interrompido apenas pelo chimarrão e o cigarro de palha, postava-se a exibir feitos. Sentíamos o tempo passando através do incessante repetir das estórias, que ele cada vez contava de um jeito. Mas ficávamos ali todas noites, de todos os anos, adentrando terras aonde Tibúrcio nos levava, tempos idos e a idéia longínqua de nós mesmos.
Tornou-se o dono dali, por assim dizer.
De tempos pra cá, vinha me pedindo que contasse aqui sobre ele, e ficava dando voltas em volta de mim, seu risco do lado do olho esquerdo parecia saltar adiante e falar por ele... Dava passos surdos pela sala, mas eu podia sentir o cheiro da terra na sua sombra; sempre sabia quando Tibúrcio chegava. Andava estranho, mais macambúzio do que nunca, e nem causos contava mais. Sumia, vezes, e demorava dias pra voltar. Então, trazendo barro pra dentro de casa, voltava a me pedir que o trouxesse aqui. Preocupava-me, o Tibúrcio. Vez, sumiu tanto tempo que achamos que não voltaria mais; acabou aparecendo, com novos sulcos no rosto e os olhos ainda mais apertados – parecia não haver lugar para eles. Dali em diante nem falava quase, apenas sons guturais dizendo coisas que não se entendia. No então, seus olhos, espremidos, me perscrutavam, querendo entender o que eu fazia aqui, queria vir também...
Aquela época prolongou-se além do que imaginávamos. A fazenda perdia a cor, pouco a pouco, o silêncio gritava à noite e a friagem nos visitava com muita vontade, sem o queimor do Tibúrcio. O tempo, ah esse passava tão devagar que nos arrastava pelos dias. A casa, mal cuidada, sentia saudades dos passos dele por ali...Tínhamos um olhar cheio de interrogações e reticências, sem respostas. Sentíamos falta dos riscos no rosto do nosso “dono”, dos gestos que fazia em seu nariz, do seu andar sem modos. Mais ainda de seu semblante lírico em seu rosto de barro. Só quem não precisava sentir saudades era a terra da fazenda, quente e úmida, marrom lustrosa, com sulcos bem marcados...Que agora tinha oTibúrcio de volta.
Betina Mariante Cardoso
Maio/01

Thursday, May 18, 2006

Tempo. Subjetivo. Cronologia, metereologia, impressões. Memórias. Dia de Sol. Outono, friozinho. Quinta-feira, e acabou a semana...Maio já. Logo chega agosto, e dezembro se aproxima. uma professora de química, no colégio, no primeiro dia de aula, em março, advertia:"o fim do ano tá aí". Devo ter aprendido com ela. Por que será que tempo serve pra duas coisas ao mesmo tempo? Falar do tempo no elevador, se chove ou faz sol, e que já está na época mesmo. Falar de como o tempo passa, que já estamos na metade do ano. Pensar no tempo que faz, tempo que passa. Pensar no tempo que faz, que roupa usar se esfriar à tardinha. Tempo, tempo, tempo. Olho pela fresta da janela, sabendo que hoje faço sol. Meu tempo. Esse céu azul, céu claro da manhã. Pela janela, dia bonito. Como ontem. E ontem é tempo, também. Ambigüidade do tempo. "Método da contagem mágica", que funciona pra fazer passar o tempo mais rápido. Dentro de nós, imagino. Segurar o relógio, pro tempo não passar. Mas passa, e o calor da manhã vai virando friozinho no fim da tarde. A noite chega, e um outro dia de sol passou. Temos também nossa metereologia própria, sentir sol, chuva e tempestades numa atmosfera particular. Temos também uma contagem de tempo só nossa, que ultrapassa o conceito de fuso horário. Um fuso próprio, contado por nós. Tempo, tempo, tempo.

Wednesday, May 10, 2006

Pois hoje é daqueles dias que acordo dizendo que não estou inspirada, que nem vou escrever. Aquela sensação de que o acordar saiu desajeitado, que o ideal seria acordar de novo, justamente pra acordar com inspiração. Falta de inspiração. Mas acordo, desse jeito mesmo. Vem a sensação de que há uma página esperando por mim, com inspiraçãao ou sem. Não importa mais. Escrever torna-se parte dos dias. Pungente, a sensação. Me remexo, resisto, me atormento. Não, não vou escrever. A falta de assunto é o que inicialmente me paralisa, a falta de um artifício. Um bom artifício. Falta de inspiração. E o ritmo, que hoje estou até mesmo sem ritmo. Lembro de assuntos. Quem sabe. Não. Escritas já escritas, tempo faz. Nem assim. Coisas que um dia gostaria de ter escrito, mas não fui eu, e já existem em algum lugar. Não são mais minhas. Nunca foram. No dia em que acordei com a idéia, mas sem inspiração, alguém já escreveu. Inspirado. Falta de Inspiração. Não sei mais. Falta de inspiração é falta de assunto? Ou de ritmo? Ou de vontade?Ou do genial? Não importa. A escrita, agora, quer sair. Quer ser. Movimento caótico de palavras, se empurrando na porta, querendo sair. Furando a fila, pra passar na frente. Explicam às palavras que hoje não é dia de espetáculo, querem mesmo assim. Se posicionam em fila desordenada, prontas pra voar à folha, assim que abrirem a entrada. Discutem seus postos, uma quer cadeira no primeiro parágrafo, outra no último. Outra ainda, mais tímida, prefere os parágrafos do meio, "onde tiver lugar, tá bom", fazendo ares de sem graça. Mas está na fila, quer seu destaque. Uma, mais orgulhosa, chantageia: "se eu não for a primeira do segundo parágrafo, então não vou", ao que retruca outra "não vai, então, que daí sobra lugar". Sem chefe, disputam postos, hierarquias. Ao bel prazer. Prontas pra correr à folha, nem mesmo planejam quem fica onde. "Vai ser onde tiver lugar". Substantivo com substantivo, conjunções emboladas lá no meio da fila, verbos organizados num grupinho, só olhando a cena. Decidiram não ir. Pedem pelos verbos, tentam persuadí-los, argumentam. Não vão. Fazendo charme. Adjetivos vaidosos organizam-se em time pelos parágrafos, esses sim tem seu lugarzinho, que sempre cabe um adjetivo. Mas os verbos...? Sem eles, os adjuntos adverbiais também não vão. "Quem sabe a gente vai, então?", tenta um, mais diplomático. E a pontuação? Exclamações, interrogações, reticências, vírgulas. Pontos finais, vários deles. dois pontos, travessão. Estão numa fila separada, não se misturam muito. Acabam se encaixando, sempre tem lugar. Apertam-se, se for necessário. "Será que vai ter pontuação suficiente pra todos os parágrafos...?", pergunta uma das palavras, com pose de chefe. E assim o rebuliço vai. Querem passar, essa é a questão. Inspiração, ritmo, nada disso. Querem seu lugar, querem sentar-se confortavelmente num dos parágrafos.Constituir o texto, fazer parte. "Senhorita, pode passar pro segundo parágrafo, por favor, que esse lugar estava reservado pra mim?", diz um dos verbos, com certa empáfia. A folia da fila. A confusão dos lugares, já aberta a entrada. Acomodaram-se onde dava, entraram em empurrões. A primeira palavra do primeiro parágrafo, e a última do último: as mais disputadas. Palavras e pontuações acabaram misturadas nos parágrafos do meio, aglomeradas sem critério, num texto inusitado. Tinha palavras que não se falavam havia muito tempo, reencontraram-se. Fofocas, olhares, caretas. Mas estavam ali, tinham seu lugar. Algumas sobraram na fila. "Está lotado, senhora. Tinha gente aqui desde cedo, hoje". "Fica pra próxima...", repetiam-se, em tom de desconsolo. "Não foi dessa vez", repetem algumas, dando de ombros. Também as injustiçadas, manisfestando intensa auto-comiseração, saem caminhando em passos lentos, balançando a cabeça. Tentarão em próximos textos, quem sabe chegando mais cedo. Ficam fofocando que algumas classes acabam privilegiadas, como os adjetivos, que sempre se ajeitam aqui ou ali. Quem entrou, entre palavras e pontuação, já se acomodou. a maioria conseguiu lugar, mas houve quem tenha sentado no chão. Pode até passar meio desapercebida, mas já tem um texto no currículo, ainda que sem cadeira específica.
E assim se monta um texto. Sem inspiração, vezes. Sem ritmo. Na confusão das palavras, que entram sem avisar, procurando espaço. E se acomodam, se conhecem, se misturam, entre uma vírgula e outra. Pontuações desavisadas aparecem aqui ou ali, em ordem desordenada. E, independente da nossa vontade, chegamos à última palavra do último paágrafo. Essa tem lugar de destaque. Mas quem aparece mesmo é o ponto final, que encerra a linha. Discreto, pontual, decidido. Ocupa seu lugar, sem dizer nada. Senta-se, e acomoda-se confortavelmente. Faz-se necessário. Interrogação, exclamação e reticências ficaram espalhadas pelo texto, meio perdidas, puxando assunto com as palavras. Numa lógica própria, escreve-se o texto.
Betina Mariante Cardoso

Sunday, May 07, 2006

Chamei o paciente à porta, pelo nome. Sua expressão era severa, e tinha olhar vago, de quem parecia olhar para cenas que só ele via. De seus cinqüenta e poucos anos, parecia. Poucas eram as mudanças em seu rosto, como moldado a gesso em sua seriedade. Mais do que isso. Pele branca, de uma textura que lembrava cera, em tom pálido. Cabelos cheios, já acinzentados, com alguns fios brancos. Desgrenhados, um desleixo à sua figura. Bochechas fartamente preenchidas, com a queda natural dos anos, mas ainda mais. A falta de expressão de seu rosto tornava mais visíveis as saliências: as bochechas pareciam maiores, o queixo disforme, o nariz engordado, a testa riscada por rugas de expressão, que espalhavam-se largamente. A voz, grossa e rouca, saía em tom baixo. Homem de poucas palavras, poucos semblantes. Sentou-se, gravemente. Pachorrento, ocupou toda a cadeira. Era, com a cadeira, uma unidade. Imóvel em seus gestos, parecia parte do inanimado. A voz, de onde saísse, não parecia sair dele: ventríloquo, talvez. Pouco movia os lábios para falar, e os olhos permaneciam mirando um horizonte só seu. Não diria cabisbaixo: seu pescoço nem mesmo direcionava os moviementos da cabeça, como se desligados. O corpo acompanhava a imobilidade do rosto. Estava ali, e não estava. Suas falas quebravam o silêncio por segundos, respondendo a perguntas e calando-se, como escutando, num outro plano, as próprias histórias.
Interroguei, em anamnese, dados de identificação. Circense, falou, e rapidamente. Resposta seca, áspera. Com suave arrogância, que percebia-se pela impostação mais grave da voz. Como se fosse óbvio, estampado no rosto, o seu ofício. Título que parecia ser seu nome, sua idade, sua profissão, sua naturalidade e procedência, seu estado civil. Circense, repetiu, frente ao meu olhar perplexo. Um silêncio me paralisou, e escrevi em sua ficha, vagarosamente, aquela informação. Enquanto imaginava. Por segundos, me vi suspensa num ponto de interrogação, quase não acreditando, perscrutando sua figura. Circense? E completou: cômico. Cômico de circo. Me pus a olhar novamente aquele homem sentado ali. Busquei, em suas feições, algum dado que me remetesse a imagem de um cômico de circo. Palhaço, ele afirmou, talvez percebendo minha hesitação. Busquei em minhas memórias da infância a figura do palhaço de circo, e definitifamente não era aquela. Tentei imaginá-lo mais moço, no auge dos seus trinta e pouco, quarenta anos. Colocava sua figura nas memórias do domador de leões, mas não do palhaço. Isso, não. Continuava buscando, naquela imagem, resquícios do palhaço que fôra. Nem assim. Sondava, em sua máscara imóvel, minhas lembranças, como que querendo acreditar no inusitado que me afrontava, me surpreendia. E o homem seguiu respondendo os itens da anamnese formal, conforme eu o indagava. Nessas alturas, as questões médicas ficaram, pra mim, em segundo plano. Eu queria mesmo era saber a história do circo. Sentia uma curiosidade pungente em conhecer sua vida mambembe, suas peripécias, seu personagem. A história por trás daquela fisionomia. Histórias. Revelava trajetos, localidades, gentes. Tudo sob o pretexto da anamnese, que deixei de seguir formalmente. Escutava, apenas. Ali, era ele comandando o espetáculo. E disso, ele gostava. A atmosfera do picadeiro trouxe à consulta a tonalidade de suas reminiscências. Já modulava a voz, e no semblante já se desenhava algo parecido com alguém que um dia foi circence. Cômico, dizia ele, em tom sério, respeitoso, orgulhoso de si. Enquanto contava sua vida no circo, e a apresentação da queixa médica, eu mirabolava percursos, personagens outros, grandes tarde de circo, figuras do meu imaginário. Rodopiava com o paciente pelos giros do tempo, escutando sua voz num horizonte só meu, de imagens da lembrança e da fantasia. Me decepcionava, quando buscava nele um palhaço de circo que não conseguia enxergar. E foi então que, respondendo perguntas médicas, trouxe à sala uma nova identidade. Melancólico. E de circense passou a ex-palhaço, atual melancólico. Novos dados de história médica, e eu conseguia já alinhavar uma idéia mais verossímil da figura do homem, antes um estranho insólito pra mim. Não me sentia médica ali, mas expectadora de um ex-espetáculo. E, curiosa, persegui as peculiaridades de seu relato. Fidedigno, parecia. Mencionou suas mirabolantes movimentações na vida de circo, e atribuiu causas ao sofrimento atual. As causas: sua vida de circo. Mas isso demorou a dizer, como não podendo admitir. E referiu que tantas e tantas noites perdia, lembrando-se das vezes em que se atirara do Gobo da Morte, e do uso inconseqüente de suas forças físicas. Execução de sua profissão circense. Não só melancólico, mas irritado, doído em todo o corpo, lamentando e enaltecendo, paradoxalmente, seu personagem de circo. Apresentando, ali, a figura de quem foi, e não poode mais ser. Pelo tempo, pelas dores, pela falta de vontades. De tudo.
A história de um personagem-paciente, entremeada com a de um personagem ex-circense, num paradoxo. A personagem-médica, que abandonou o protocolo de anamnese formal para dar espaço à escuta da história por trás. A dele, e a minha, também. Buscando unir a figura daquele homem, sentado ali, com o que eu esperava de um ex-palhaço de circo. Não encontrando respostas, me vi criança, assistindo a qualquer coisa parecida com um espetáculo. Encerrei a consulta, dei-lhe boa tarde, apertando-lhe a mão. Chamei o próximo paciente.
Betina Mariante Cardoso

Friday, May 05, 2006

Me assustei. Numa defesa de Tese de Doutorado, esta manhã, a sensação era de que o cenário tinha virado pesadelo. A Doutoranda apresentou a tese, o clima parecia o mesmo de sempre. A, no final. Abraços, elogios, comentários e posicionamentos suaves, críticas emolduradas em sorrisos. Parecia. Os integrantes da banca começaram a falar, e o clima continuava parecendo. E o céu começou a escurecer. Um dos integrantes posicionou-se contrário aos pontos apresentados pela candidata, e, com uma discussão bem fundamentada, fez trovejarem os semblantes da sala, uma nebulosa de silêncio e expectativa. Eu olhava, escrutinando, todas as expressões da banca, cada um sentado ali toranava-se personagem de minha mirada. E fui me assustando, pela real modificação no olhar, pressão dos lábios, contração dos músculos da face, enrugamento da testa. De cada um. Vezenquando, surgia um olhar mais perplexo, outro inquisidor. Olhares à candidata, ao escrutinador, aos outros juízes daquele instante. E também um lugar reservado à ironia. Aquela mesma, dissimulada, forjada em traços do rosto que se escondem, mas sorriem ao olhador. O que falava prosseguia em marcha, num ritmo pontuado pela robustez de suas afirmações, pela tonalidade explícita de suas apreciações. Percorria com pausas sérias sua fala grave, levava tons mais enfáticos aos seus propósitos de julgador. Tornava a cena, antes solícita e agradável, em uma figura de temporal. E não só na expressão dos juízes: os expectadores, cada vez mais surpresos com a circunstância, adiavam seus compromissos, mexiam-se nas cadeias, decidiam ir embora mas ficavam ali. E, participando de cena insólita, perscrutavam as respostas da candidata, revolviam-se em olhares pela sala, imaginavam resultados perplexantes, estrondosos. Impassível, um dos sentados mexia na perna direita, num vai-vêm angustiado. Porque as críticas realmente eram cabíveis, justas, meticulosas, pontuais. De objetividade invejável. Mas colocavam à prova a realização das expectatias da candidata, que foi murchando, erguendo-se em si mesma e murchando de novo. Todos ali: na platéia, na mesa da banca juladora, e diria até as próprias cadeiras, não cabiam em si. Misto de apreensão e curiosidade, de interrogação e reticências. Talvez precipitada pelo anúncio, prévio às avaliações, de que numa ocasião de defesa de tese em Doutorado os resultados ainda estão em suspenso. Dependem das apreciações da banca. Isso tornou vívida a tonalidade expectante dos rostos ali, dos corpos que se moviam inquietos, das fantasias de cada um, que pairavam sobre a cena. Infelizmente, saí antes de acompanhar o desfecho. Também segurava o relógio, pro tempo não passar. Para que não chegasse o momento em que eu precisasse sair, sem ver o final. A verdade é que o escrutínio assume papel de curiosidade, perverso até. Desejo de ver até onde pode chegar o inusitado. Desejo de perceber o auge dos semblantes no resultado final, a incoerência entre a perplexidade com a verdade dos fatos e a doce hipocrisia que permeia a atmosfera. A dúvida dos que assistiram a cena, se foi isso mesmo, não só impressão. Diria que o inusitado foi o comprometimento do julgador com a realidade dos fatos. A austeridade das críticas, firmes, contundentes, com valor de construção. A quebra de expectativa das cenas em que tudo sai bonitinho, A no final, e o posicionamento autêntico de um juiz em seu ofício. Mas no fundo, bem no fundo, um lamento, um desgosto, um repuxo. Parece que, ao falar a verdade, o julgador "estragou a cena", e não dava pra regravar. Sairia assim mesmo, nas memórias de quem assisitiu. Sem retape. REW ou FFW, uma cena de perplexidade. Onde ficam evidentes as farsas, onde posicionar-se com o rigor necessário causa desconforto ao expectador. Fiquei me perguntando o porquê, mirabolando as texturas da cena, durante o dia. Volta e meia, estava lá, revisitando os semblantes da manhã. E tantas coisas me ocorreram, investigando impressões, franzires, arregalares. Cabeças baixas, como que pra não escutar. E foi ontem, mas ainda permeia minhas linhas.
Betina Mariante Cardoso

Wednesday, May 03, 2006

É uma coisa da chuva. Num lance, olhamos ao redor e tudo chove. Tudo com cara de chuva, aquele acinzentadinho que risca a paisagem. E já sabemos do dia: da temperatura, da sensação, da lânguida atmosfera que nos cobrirá. Não me importo. Aliás, gosto até. A melancolia do cinza é particular, envolve os chuventes num arzinho de Impressionismo. Olhamos de novo e, de tão discreta a queda dos pingos, já não sabemos se chove, ou pura impressão. Uma pintura do dia. Continua chovendo. Misturam-se os tons, sobreposição de cinzas. Decompondo a paisagem, o que fica é a sensação da chuva. Fria, melancólica, ruminativa. Séria, mas ainda não diria que casmurra. Dá tonalidades de humor ao céu, paisagem, gentes. Chuva, frente e verso. Por onde olhamos, tudo absorvido por riscos d´água. E nós. Chovendo dentro, mas chuva fina, de cair leve, só pra dar o tom do dia. Continuamos chovendo, e aquela película de melancolia dá aos semblantes expressão perplexa, como se nunca tivesse chovido antes. Como se fosse grande novidade, a chuva. Gentes conversando no elevador, fazendo render o assunto do tempo. Guarda-chuvas e sombrinhas abrindo e fechando, respingando por tudo aquela sensação. Pode até ser que pare a chuva, mas o olhar do dia ainda nos adormece um pouco, como se fôssemos chover o dia todo. Não se trata de sensação de tempestade, que essa é bem outra coisa...Falamos em chuvinha, mesmo. Mais do que pura melancolia, vem aquela morosidade dos cinzas, do frio que vem junto, compondo cena única em nós.Lá no fundo, até gostamos.Sentimos falta quando se vai, e guardamos o tantinho da impressão de chuva fina, pra passar no céu. Quem sabe, amanhã.
Betina Mariante Cardoso

Monday, May 01, 2006

Tem dias em que me permito a melancolia. Aquele ranso de quietude. Ruminações, barbaridades insanas. Uma espécie de anestesia voluntária. Seria melhor continuar em silêncio, sem nem escrever. A escrita sai melancólica, e até o silêncio é barulhento. Frente a estantes de livros, pinçamos instantes insosos, livros que nunca leríamos. E o café, até esse é sem gosto. Mas a melancolia sim. Essa fica com gosto de melancolia, e às vezes pode. Não sempre. Tem dias que sim, está ali, ela mesma, afrontando o turno da tarde. E a deixamos ficar. Nos visita e vai embora. Vem com o frio, o vento, o barulho da rua. Barulho dos livros, na livraria. Barulho da xícara no pires, ao terminar o café. Barulho: assim mesmo. Quebra nosso silêncio, irrompe nosso despertar, deita conosco para dormir. E a melancolia é assim. Deixo ficar por ali, uns minutos. Com esse nublado do céu. Dia seguinte, que vá. Não seja perene, constante. Que visite, isso sim. Tem dias em que me permito a melancolia.
Betina Mariante Cardoso
Das Vicissitudes da Caneca Vermelha
Nesses anos todos, sempre esteve presente a caneca vermelha de ágata, plena de café. Assistindo a tudo. Estudos, relatórios, provas da Faculdade, noites em claro, reuniões de pesquisa, projetos, prova de residência, estudo de italiano, seminários de psicoterapia, tudo. Esvaziando-se, e cheia novamente. Compareceu aos momentos mais enfadonhos, mais intensos, mais frustrantes, mais exaustivos. Estava ali. Estudou comigo todas as cadeiras da Faculdade de Medicina, e principalmente farmacologia, da qual participou ativamente na busca dos meus conhecimentos...Resumos e resumos coloridos, e a caneca vermelha ali. Medicina Interna, Cirurgia, provas finais do estágio de Doutoranda, reuniões do grupo de estudos. Uma coisa séria, de se respeitar, o papel da caneca.E a minha receita de café batido: forte, negro, doce. Na caneca vermelha de ágata, tinha que ser. O milagre do despertar...
Seis anos de intensa participação. Se formou comigo, a caneca. Tantos e tantos momentos esteve ali. Eu poderia resgatá-la do fundo do armário, estaria ali quando eu precisasse. Mudou-se de lar umas três vezes, e sempre ali. Assistiu choros, risos, grandes satisfações, aprovações em monitoria, angústias todas. Sempre o café na caneca, quase um mascote de minhas atribulações. Entrou na roda dos personagens tradicionais, o café batido. Duas colheres e meia de Nescafé, três colheres de açúcar, e um tantinho de água que dê pra bater, sem enxarcar a mistura. Bater com vigor, até ficar amarelhinho, bege, cremoso. Suntuosa mistura de estimulantes, um creme farto, pomposo. Coloca-se um pouco d´água quente, uma mexidinha rápida e completa-se com a água até a altura da caneca vermelha de ágata. E essa receita atravessou os tempos, assistiu mudanças, novos empreendimentos. Aos poucos, a caneca foi sendo substituída por xícaras menores, mas eu sempre soube que o café não teria o mesmo gosto. Bom mesmo era o da caneca vermelha de ágata. Já lascada pelo uso, mas sempre ela. Bom mesmo era ter a sensação de sorver o café forte, doce, quente, pelas bordas queimantes da caneca, bordas pretas, contrastando com o vermelho intenso. A alça da caneca, de cor preta- em forma de alça de caneca, mesmo- também queimava, dando o tom do momento. Lembro, ainda. Abandonar, não abandonei. Em momentos essenciais, só a caneca vermelha. Nem xícara, nem qualquer outro continente capaz de guardar meus anseios, em instantes de atividades compenetradas . Tarefas árduas, que requerem de mim um empenho avassalador, essas merecem a caneca vermelha de ágata, um símbolo autêntico dos meus laços mais antigos com o trabalho. Quase uma instituição.
E se tivesse que parabenizar alguém hoje, pelo Dia do Trabalho, seria a minha caneca vermelha de ágata, essa merece...
Betina Mariante Cardoso