Bile Negra- melanos cholein- Melancolia
“ Porque a potência da Bile Negra é inconstante, inconstantes são os melancólicos.” Aristóteles- Problemata XXX,I
“ Mas muitos, porque o calor se encontra próximo ao lugar do pensamento, são tomados pelas doenças da loucura ou do entusiasmo. O que explica as Síbilas, os Bakis e todos que são inspirados, quando eles assim se tornam não por doença, mas pela mistura de sua natureza.” Aristóteles- Problemata XXX,I
“(...) E, nesse espelho, começo a ver imagens loucas, monstros, cadáveres horrendos, todas as espécies de animais horripilantes, de seres atrozes, todas as visões inverossímeis que devem habitar o espírito dos loucos.
Eis a minha confissão, meu caro doutor. Diga-me, o que devo fazer?” Carta de um Louco- Guy de Maupassant
17 de fevereiro de 1885
Eis a minha confissão, meu caro doutor. Diga-me, o que devo fazer?” Carta de um Louco- Guy de Maupassant
17 de fevereiro de 1885
Eis que resolvi trazer a loucura. A imaginação, a bile negra, as idéias loucas, páginas em branco de nós mesmos. Emil Kraepelin descreveu pela primeira vez a insanidade maníaco depressiva, em suas mais surpreendentes nuances. Dos melancólicos, descreveu com primor quadros pouco imagináveis por nós, atualistas.Pacientes crônicos, os quais acompanhou por anos em suas observações, até que pudesse construir suas idéias. Há alguns anos, estudando este psicopatologista, fui imaginando seus personagens, a partir de descrições quase literárias das figuras que ele construía. Fazia imaginar os mais variados tipos, fazia construirmos estórias, dava luz a seres horrendos, existentes em seus pátios. Nos pátios da minha escrita construí, na leitura de suas preciosidades, a personagem Martha. Kraepelin entrevista Martha, que se esconde, nos campos de Heideberg. A apresentação da melancolia paranóide de Kraepelin reveste-se das emoções de Martha, construindo-se assim parte de um roteiro. "Revisitando Kraepelin" apresentou personagens deste autor, contracenando aspectos das patologias que descreveu sob a forma encenada. Importante experiência, essa de criar personagens sob uma base descritiva da doença mental. Aspectos da loucura, aspectos da realidade, aspectos da literatura. E os aspectos da descrição de sintomas de um outro jeito. Um observar das descrições de Kraepelin, respeitando sua visão, e a construção, em corpo, daquelas palavras.
“Dialogada” Kraepelin X Martha
K.- E então, Martha, como se sente...?
(Silêncio)
M.- De onde vêm tantas vozes...? Vozes que me atormentam, me assombram...acusações por toda parte...Mesmo com meus passos lentos e surdos, sei que a cidade se movimenta...(silêncio). Amantes escondidos, esposas traídas, fetos abortados...E pareço ter construído minha vida sobre hábitos tranqüilos e regulares, saio sempre às mesmas horas de casa para a biblioteca e dali para casa. No caminho, vou ao secos e molhados da esquina...como ontem, quando fui comprar pão, leite, couve e ovos...Um pão de dois dias, os ovos rachados, o leite guardado no porão, há meses já. E a couve...a couve murcha...Sempre passo na mercearia à tardinha, quando os melhores produtos do estabelecimento já foram comprados pela manhã. Minha rotina escurece cedo, durmo nos mesmos horários, talvez porque não tenha por que permanecer desperta. Todos sabem quando dormi: apaga-se a única luz de vela que ainda mantenho acesa até ás 20hs, há tantos anos...Até ali, leio algum livro empoeirado trazido da biblioteca para me acompanhar enquanto tenho a luz da vela; nem sei o que leio, mas percebo o roçar da páginas na imensa inquietude do silêncio...Me inquieto por saber que, quando apagar-se a vela, a cidade falará de quem escondo em minha casa, e da devassidão que trouxe à minha vida, das noites calorosas que imaginam que atravesso após o fim daquela luz solitária. Não me acreditam solitária, não acreditam na imagem de donzela recatada, a que sai e volta para o trabalho todos os dias, com a discreta pausa na mercearia. Esperam de mim uma rotina leviana, me creditam o insucesso, a ruína, a imoralidade...Minhas noites são tomadas de mim mesma, sei que no outro dia acordarei, tomarei meu chá de maçã e prenderei meus cabelos nesse coque mal-penteado...Sairei e, como sempre quando saio de casa para a biblioteca, e de lá para casa, os sinos da igreja tocarão, anunciando que estou na rua, e que mais uma noite devassa chegou ao fim. É quando todos se olham, incriminando-me de meu passado, presente e futuro.
K.- Acredita então que a cidade controle seus afazeres, seus horários...?
M.- Sempre espero chover no dia seguinte, quando a cidade se esconde. Ainda assim, os sinos avisam a todos quando me desloco...Tanto que os olhares, quer da rua, quer das janelas, conhecem meu destino...Me ofusca a luminosidade do sol, nos dias de sol, como se minhas marcas ficassem mais nítidas com a luz. Todos vêem, todos falam.
K.- Marcas?
M.-( Silêncio) expressando pudor na região dos lábios e vergonha no olhar. (silêncio)
Falam de meu passado como amante de Ludwig, pelas ruas, me atormentam com olhares...Na biblioteca, uma vez, conseguia separar os livros por interesses, catalogá-los, reencapá-los...Pouco conseguia ler, que a biblioteca é bastante escura, mas levava livros para ler em casa...Hoje vou à biblioteca para me esconder, pois se ficar em casa dirão que escondo homens de família no sótão....Só os livros sabem que não consigo mais trabalhar, que não me interesso mais por reencapá-los ou catalogá-los, que apenas me escondo ali...Ninguém entra, ninguém sai...Pelas janelas, vejo a chuva, vejo o sol, vejo os transeuntes lá em baixo, olhando curiosos, escrutinando quem terei levado lá pra cima, pra devassar-me entre as estantes de livros. Ali dentro, só escuto os sons das páginas quando às vezes tiro o pó de um livro...E escuto as vozes, tantas vozes, que me assombram e vigiam...
K. E as vozes, de quem são...?
M. Escuto a cidade em seu burburinho, traçando os passos do meu dia e dos meus pensamentos, me incriminando. Têm volume alto, todos escutam meus segredos, as recriminações. Até os olhares têm vozes...
K.- (tom cordial)... Explique-se, por favor...
M.- De fato existe algo entre eu e o mundo...Ontem fui, como em todos os dias à tardinha, à mercearia...Já havia o sino tocado, todos sabiam que eu transitava pela cidade, e que àquela altura, pela hora, já estaria ali...Friederich me olhou ao alcançar o pão, e olhou para Anna com olhos inquisidores...Ele me olhou como se soubesse de minha ruína, meu estado atual, já nessa idade avançada, e ainda solteira, deixada...Olhou-me sabendo de um segredo que me incrimina, que poderia me arrasar. Posso imaginar que ele saiba, mas eu mesma não sei. As vozes dizem que destruo lares, uma leviana...Ele poderá ouvi-las...? se soubesse disso, me teria feito saber,é um homem do bem...parece...Poderá estar contando aos outros fregueses, por isso os olhares severos por toda parte. É o único estabelecimento de secos e molhados da cidade...Todos compram lá, de manhã cedinho, quando vem o melhor pão...E os melhores comentários das noites no sobrado onde moro...Desde o horário mais cedo da manhã, me olham como desvendando a minha inquietude, meus pecados.Ontem me apontou na rua uma senhora zelosa, mãe de família, que não hesitou em me acusar com sua moralidade...Fez isso com os olhos, mas fez de fato, balbuciando pregações. Não tenho pudor ou respeito, e os olhares me gritam. Não deixo calar meus pensamentos, não consigo silenciá-los quando me vejo no escuro do meu siilêncio, da minha rotina solitária. É quando me lembro que todos já sabem que fiz algo, que ainda nem sei o que será. Quando me lembro da minha ruína. Os pensamentos são rápidos, inquietos, mas minha velocidade arrastada me impede de alcançá-los...Até meus pensamentos conhecem mais de mim do que eu possa alcançar...
K.- Parece estar difícil viver assim...
M.- (Silêncio)
(Olha para o interlocutor, mostra-se hesitante)
Por vezes penso...(pausa), mas mal consigo erguer-me pela manhã... Seria melhor se não sobrevivesse...(pausa). Mataria a mim, apenas, para que ninguém guardasse na memória as idéias de minha ruína...(pausa)...
K.- E então, Martha, como se sente...?
(Silêncio)
M.- De onde vêm tantas vozes...? Vozes que me atormentam, me assombram...acusações por toda parte...Mesmo com meus passos lentos e surdos, sei que a cidade se movimenta...(silêncio). Amantes escondidos, esposas traídas, fetos abortados...E pareço ter construído minha vida sobre hábitos tranqüilos e regulares, saio sempre às mesmas horas de casa para a biblioteca e dali para casa. No caminho, vou ao secos e molhados da esquina...como ontem, quando fui comprar pão, leite, couve e ovos...Um pão de dois dias, os ovos rachados, o leite guardado no porão, há meses já. E a couve...a couve murcha...Sempre passo na mercearia à tardinha, quando os melhores produtos do estabelecimento já foram comprados pela manhã. Minha rotina escurece cedo, durmo nos mesmos horários, talvez porque não tenha por que permanecer desperta. Todos sabem quando dormi: apaga-se a única luz de vela que ainda mantenho acesa até ás 20hs, há tantos anos...Até ali, leio algum livro empoeirado trazido da biblioteca para me acompanhar enquanto tenho a luz da vela; nem sei o que leio, mas percebo o roçar da páginas na imensa inquietude do silêncio...Me inquieto por saber que, quando apagar-se a vela, a cidade falará de quem escondo em minha casa, e da devassidão que trouxe à minha vida, das noites calorosas que imaginam que atravesso após o fim daquela luz solitária. Não me acreditam solitária, não acreditam na imagem de donzela recatada, a que sai e volta para o trabalho todos os dias, com a discreta pausa na mercearia. Esperam de mim uma rotina leviana, me creditam o insucesso, a ruína, a imoralidade...Minhas noites são tomadas de mim mesma, sei que no outro dia acordarei, tomarei meu chá de maçã e prenderei meus cabelos nesse coque mal-penteado...Sairei e, como sempre quando saio de casa para a biblioteca, e de lá para casa, os sinos da igreja tocarão, anunciando que estou na rua, e que mais uma noite devassa chegou ao fim. É quando todos se olham, incriminando-me de meu passado, presente e futuro.
K.- Acredita então que a cidade controle seus afazeres, seus horários...?
M.- Sempre espero chover no dia seguinte, quando a cidade se esconde. Ainda assim, os sinos avisam a todos quando me desloco...Tanto que os olhares, quer da rua, quer das janelas, conhecem meu destino...Me ofusca a luminosidade do sol, nos dias de sol, como se minhas marcas ficassem mais nítidas com a luz. Todos vêem, todos falam.
K.- Marcas?
M.-( Silêncio) expressando pudor na região dos lábios e vergonha no olhar. (silêncio)
Falam de meu passado como amante de Ludwig, pelas ruas, me atormentam com olhares...Na biblioteca, uma vez, conseguia separar os livros por interesses, catalogá-los, reencapá-los...Pouco conseguia ler, que a biblioteca é bastante escura, mas levava livros para ler em casa...Hoje vou à biblioteca para me esconder, pois se ficar em casa dirão que escondo homens de família no sótão....Só os livros sabem que não consigo mais trabalhar, que não me interesso mais por reencapá-los ou catalogá-los, que apenas me escondo ali...Ninguém entra, ninguém sai...Pelas janelas, vejo a chuva, vejo o sol, vejo os transeuntes lá em baixo, olhando curiosos, escrutinando quem terei levado lá pra cima, pra devassar-me entre as estantes de livros. Ali dentro, só escuto os sons das páginas quando às vezes tiro o pó de um livro...E escuto as vozes, tantas vozes, que me assombram e vigiam...
K. E as vozes, de quem são...?
M. Escuto a cidade em seu burburinho, traçando os passos do meu dia e dos meus pensamentos, me incriminando. Têm volume alto, todos escutam meus segredos, as recriminações. Até os olhares têm vozes...
K.- (tom cordial)... Explique-se, por favor...
M.- De fato existe algo entre eu e o mundo...Ontem fui, como em todos os dias à tardinha, à mercearia...Já havia o sino tocado, todos sabiam que eu transitava pela cidade, e que àquela altura, pela hora, já estaria ali...Friederich me olhou ao alcançar o pão, e olhou para Anna com olhos inquisidores...Ele me olhou como se soubesse de minha ruína, meu estado atual, já nessa idade avançada, e ainda solteira, deixada...Olhou-me sabendo de um segredo que me incrimina, que poderia me arrasar. Posso imaginar que ele saiba, mas eu mesma não sei. As vozes dizem que destruo lares, uma leviana...Ele poderá ouvi-las...? se soubesse disso, me teria feito saber,é um homem do bem...parece...Poderá estar contando aos outros fregueses, por isso os olhares severos por toda parte. É o único estabelecimento de secos e molhados da cidade...Todos compram lá, de manhã cedinho, quando vem o melhor pão...E os melhores comentários das noites no sobrado onde moro...Desde o horário mais cedo da manhã, me olham como desvendando a minha inquietude, meus pecados.Ontem me apontou na rua uma senhora zelosa, mãe de família, que não hesitou em me acusar com sua moralidade...Fez isso com os olhos, mas fez de fato, balbuciando pregações. Não tenho pudor ou respeito, e os olhares me gritam. Não deixo calar meus pensamentos, não consigo silenciá-los quando me vejo no escuro do meu siilêncio, da minha rotina solitária. É quando me lembro que todos já sabem que fiz algo, que ainda nem sei o que será. Quando me lembro da minha ruína. Os pensamentos são rápidos, inquietos, mas minha velocidade arrastada me impede de alcançá-los...Até meus pensamentos conhecem mais de mim do que eu possa alcançar...
K.- Parece estar difícil viver assim...
M.- (Silêncio)
(Olha para o interlocutor, mostra-se hesitante)
Por vezes penso...(pausa), mas mal consigo erguer-me pela manhã... Seria melhor se não sobrevivesse...(pausa). Mataria a mim, apenas, para que ninguém guardasse na memória as idéias de minha ruína...(pausa)...
Sensações da loucura, em personagem. Sob texto de Emil Kraepelin, a montagem de um roteiro, em que Martha vestia-se de branco, desgrenhada,escondida sob os degraus da escada do hospital, em seu próprio mundo.Por sob o véu da melancolia,traduzia em emoções as perspicazes observações descritas pelo médico. O que tem-se hoje é apenas mera noção da intensidade de tal loucura. Felizmente, noção tão clara em detalhes que faz possível reconstruir imagens. Como Martha, diversos outros elementos foram imaginados. kraepelin registrou, com precisão de rico observador, textos literários, em que descreve, ele mesmo, personagens, histórias, cenas peculiares. Registrou a Ciência e a Literatura, figuras reais em máscaras poéticas, de plena loucura.
Betina mariante Cardoso
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