Saturday, April 01, 2006


A SENHORA


Já sabia Eubúlides de Mileto que a mentira ainda ía dar o que falar. Aí, sofismou: “Se algúem afirma ‘eu minto’, e o que diz é verdade, a afirmação é falsa; e se o que diz é falso, a afirmação é verdadeira.” Parece, entretanto, paradoxal falar em sofisma, quando o sonho da Mentira é tornar-se insofismável...

...Agora, lembrando, Ela chegou. Senhora muito elegante, de expressão envelhecida, com olhos da ingenuidade anuviada das moçoilas descobrindo mundos. Mesmo tempo, naquele semblante, algo sorrateiro ( acho que está nos cantos da boca, que se movimentam, um de cada vez, dissimulando a própria identidade).

De vestes caras, escurecidas da cor da noite. Apenas certa luminosidade, dando balanço ao tecido sedoso. Adereços ricos em detalhes únicos; jóias de brilho irresistível. E pompa, muita pompa. O ar envelhecido não faz rugas nem manchas no rosto, transpassa por ali o peso das idades. Tantas, remontam os lugares por onde já esteve. Longilínea em suas formas, mas de belos contornos, exibe a habilidade e segurança do equilibrista na corda do circo.

Ele, seu “cliente”. Vezes, seu servo. Delira diante de sua perfeição, do caráter instigante, e tem, com sua algoz, esquisita simbiose. Formam, a Mentira e o Mentidor, casal de interesseiras relações: Ele, a Ela se rende, escapando do anonimato com o brilho de suas jóias; Ela o seqüestra e seduz, obrigando que propague, aos quatro ventos, suas epopéias e luxúrias.

Ele até sabe, de si para si, das próprias fraquezas.
Eu, aqui cá comigo, fico pensando: Quem mente é o Mentidor, ou é a Mentira que se impõe, mentindo por si só? Seria o Mentidor refém de suas práticas, ou cúmplice em suas artimanhas...? Bom, a gênese de Mentira está em si mesma: sendo mais forte, persuade o Mentidor. Em eixos cartesianos, Ele está em função dos seus caprichos. Ela criou seu personagem, Ele paga preço pela nobreza... A simbiose pode até ser friável: torna-se sólida, ao compartilharem o brilho.

É Ela quem faz tremerem os brios do Mentidor. Ele diz da impossibilidade de recusar sua visita: é anfitrião de honrar com compromissos.

Não mentem um para o outro: entre si, são guardiões de sua história, de seu caso de amor. Ele exalta a perfeição, o fascínio e a riqueza daquela que é sua amante e sua algoz; Ela, senhora da situação, chega sem pedir licença, ocupa espaço, diz a que veio; Ele, em êxtase, mente a mentira perfeita e sabe nunca ter sido traído; Ela, de pernas longas, não dá passos em falso; Ele vangloria-se por bom mentidor, mas está mentindo: aqui, quem mente, é Ela. Mulher de fibra, essa tal Mentira: faz-se essencial.

Algumas falsárias tentam imitá-la, mas não são sequer longilíneas: têm as pernas curtas. Nem são espertas ou elegantes. Não percamos tempo com elas, pois nunca serão A Senhora; nunca renderão qualquer mentidor.

Nossos personagens seriam ideais. Até aqui. Agora, desmascarados. Completam-se, compondo um sofisma. Desfazem-se os personagens. Mas... supondo que estamos num delírio ( que o delírio nunca sabe estar delirando), retomemos os personagens.

Ele aceita sua presença, acostuma-se com Ela, torna-se dependente; Ela o subjuga, e este é seu preço de meretriz. Vezes, Ele desacredita de sua lealdade: percebe que Ela, antes de querer-lhe bem, deseja a sensação de poder, o monopólio, a supremacia. Ela faz dele gato e sapato; mas Ele, senhoras e senhores, santo que não é, desfruta de um corpo ao seu bel prazer, usa seus brilhos e o macio de suas sedas. Deita-se com ela, esbanja-se de luxúria dia e noite, e ainda faz sucesso ao proclamar seus feitos, que nem são seus.

Todos olham para Ele, admirando suas façanhas. Detalhes estruturados, respostas planejadas. Tudo vale, em nome do exercício perfeito do próprio título de Mentidor.

Ele vai ficando onipotente, onisciente; Ela, um dia, vai cobrar-lhe os lucros.
E cuidado, o Mentidor: se hoje leva os louros da vitória, só há uma traiçoeira - a falta de memória...

Tem mais: o subterrâneo da Mentira expõe sua obviedade. A perfeição é tanta, que nós, acostumados à imperfeição inerente às histórias da vida, já sabemos que deve ser mentira. Ele, de herói, passa a mentiroso, o que é diferente de ser Mentidor. Do mentiroso, já se sabe que mente; o Mentidor ainda tem crédito. Por enquanto.


Mentira e Mentidor. Amantes. Entre as quatro paredes, herméticos. Ela o “escraviza”, Ele não reage; Ele esplora-lhe as carnes, Ela cobra seu preço. E se forem descobertos, e a verdade vier, enfim? Criminosos!

E então, o Juiz:
-A culpa é da Mentira! Surpreende o Mentidor... a ponto de ele não resistir à perfeição de ser o autor.

Betina Mariante Cardoso - maio 2000- revisto 01/04/2006

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