
Papel Crepon
Esta poderia ser uma fotografia de domingo em sol, em San Telmo, Buenos Aires. Ou uma sobreposição das tantas imagens que a feira nos faz enxergar...Mas uma estória como esta não há retratos que contem.
Por enquanto, basta sentirem o cheiro de uma manhã de domingo por ali: mistura-se, num panelão, o cheiro do sol das onze horas, das peças antigas expostas na feira, dos perfumes das gentes, dos cafés, do tango e do perene; aquece-se a mistura em fogo alto- mexendo cuidadosamente, que fique homogênea- e, no início do borbulhar, joga-se no céu azul de San Telmo.
Em chegando, já nas ruas laterais estão alguns feirantes, vendendo toda sorte de bugigangas antigas ou artesanais. Ali, também, muitos antiquários, de peças de grande valor e sob fraca iluminação, o que confere a tais lojas atmosfera peculiar e instigante. Os gramofones, em vida própria,exibem-se,tocando tangos,fazendo da feira salão de baile...
Dos cafés, há um em especial, em nobre esquina, de nome “Plaza Dorrego”, de fachada cor goiaba com toldinhos verdes, e uma antiga porta de madeira e vidro; lá dentro, um chão em tabuleiro de xadrez sob mesas de madeira, nas quais chegam amendoins vindos de barricas rústicas; soberano, o cheiro do café, tomando o ambiente. Dali, de uma de suas janelas, vê-se que os passeantes da feira, as figuras exóticas e os dançarinos de tango adentram, sem saber, cena perene e inédita, da qual o olhador é parte.
Pois que estou aqui pra remontar uma fatia desta cena...Em tempos já esfumaçados, certa dupla de dançarinos, Maria Mercedez e Juan Cristoban, chegaram em seu novo palco: a nobre esquina em frente ao café, cenário a que pareciam sempre terem pertencido... Tome-se agora o afinado dos seus passos, o lirismo do seu olhar, a parceria dos seus corpos: eis o motivo por que, em apaixonamento, toda a feira calava-se para admirar seu tango. Olhos que se lembravam de amores passados, choravam outros, esperavam enlevos ainda adormecidos ou, no agora do então, suspiravam enamorados... Todos assistiam, absortos, aos “partners” de San Telmo.
E Maria Mercedez, em sua dança capciosa, esbanjava-se em ventanias corporais, num indo e vindo tão plástico que parecia improviso longamente encenado. Seus ares exalavam drama e instinto, e o que era apenas espetáculo de esquina tomava os visitantes em seu imaginário, incitando os sentidos. Nisso tudo, a dançarina aprendera a desvendar semblantes, talento que resistiu à passagem das fumaças.
E a dupla dançou seu tango por um tempo não contado. A milonga, tristonha, foi adormecendo com o passar, na memória daqueles tantos olhares. Se houvesse palco com cortinas dum veludo vermelho-carne, elas fechariam-se aqui, encerrando um ato...
De Juan cristoban nunca mais se soube; contam que volta à sua esquina em quandos espaçados, lembrando-se da dança, dos galanteios, dos romances. Maria Mercedez tornou-se figura da aquarela, aos domingos, mas os pincéis não a pintam como antes: é hoje dama gorda, usando vestido de flores graúdas(o que aumenta ainda mais sua silhueta), vendendo flores de papel crepon, como recém-saídas de seu vestido... De uma delas, diz ser a “flor do amor”, de atributos misteriosos. Ali, em sua banca primaveril, Maria Mercedez exerce seu antigo talento em perscrutar semblantes, oferecendo a flor tão somente aos olhares de enlevo que vislumbre.
Àqueles já esquecidos dessa sensação ela mostra outros feitos de crepon, mas nunca a misteriosa flor. O engraçado é que, com toda a parafernália, vezes, desaparece aos olhos das gentes que procuram sua flor por capricho...Talvez esconda-se no passado, ou seja ainda ventania.
Dia, dessas cenas que os contos contam, enganou-se a dama gorda, entregando a sua flor a um cortês senhor de barbas espichadas e olhar enternecido, mas que nunca, nunca suspirara pelos arroubos da paixão. Comprou-lhe a flor por colecionador de exuberâncias que era, ilustre milionário portenho... Em meio às fortunas gastas na feira, pagou-lhe ninharia pelo artigo, e esqueceu-se dele numa das próximas bancas por que passou. Se caiu ao chão ou foi jogado, não se sabe, mas ali começaram as estranhezas.
Dum repente, a feira foi tomada pela flor,que surgia em toda parte, exibindo-se nos gramofones, garrafas, janelas...Como por encanto, era como se a banca de Maria Mercedez tomasse o arrabalde, como se aquela plasticidade de sua dança ainda pudesse tomar os olhares de San Telmo.
Num êxtase, as tantas gentes tentavam arrancar as flores, que se punham enrediças em jardins suspensos. O feitiço, no entanto, tornava-se incontrolável, e cada vez mais flores, que sedesmanchavam ao serem tocadas, como feitas a tinta. A feira tomou-se de cores e formas, mas ninguém entendia aquele disparate.Todos pareciam ter esquecido a paixão que o tango incitava, naquele primeiro ato...
Ora, a flor surgiu entre os lábios de um episódico dançarino, naquela mesma esquina. Este, exalando toda alma da dança, arqueou a flor aos lábios de sua “partner”. Traduziu, em acrobacia improvisada, a sublime feitiçaria daquele artefato. Ali, como se os ponteiros rodassem tempos atrás, todos os olhares lembraram-se da sincronia entre Juan Cristoban e Maria Mercedez, desejando enlevo como aquele. E foi assim que, estranhamente, houve um sumiço geral das flores em toda feira, menos na banca florida da dama gorda.
Dali em diante, a tal banca tornou-se a mais procurada, pois todos queriam adquirir o feitiço, poder tocá-lo. Era notícia que se propagava, a do acontecido naquele arrabalde. Então, no lusco-fusco de um domingo, insana veio a ventania, levando as flores de papel crepon a tantas distâncias que nem o tempo soube contar. Maria Mercedez nunca mais foi vista, mas dizem que , vezes, vem uma brisa dançar tango junto aos gramofones vivos de San Telmo.

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