Tuesday, April 04, 2006

NAS NOITES

Caixa dos sonhos: de retalhos de cetim, cores e formas. Frenéticas imagens dum caleidoscópio. Lá o dramaturgo, inventando estórias ao bel prazer. E o tal mexe e remexe nas cenas da caixa, contando o tempo, sequenciando os sonhos. Em cenários, figurinos e fundos musicais, personagens encenam papéis tantos na mesma noite que até mesclam-se os roteiros. Num girando e noutro do caleidoscópio, imagens incessantes, pantomimas, comédias e melodramas revolvem-se no sonhante.
Seriam apenas os jogos ópticos do imaginoso dramaturgo?
Sem idade, sem semblantes. Genialidade tanta que confabula tramas sem qualquer juízo; puro deleite. Num girar de espelhos, faz bailarem rotineiros e inacontecíveis. Minucioso no cálculo das figuras e nas falas das gentes, faz sempre soar a improviso. Do esquecimento do dia seguinte, uns sonhos guarda na caixa da memória, esculhambados; outros fogem por frestas, passando na tela como imagens ruidosas. Alguns, mais exibicionistas, lançam-se esbaforidos à sala de projeção.
Estórias repetem-se, ou ficam escondidas para nunca mais. E há os não legendados, as dublagens mal-feitas. Indecifráveis.Tudo obra do dramaturgo, diagramador de devaneios e estranhezas. Noites, aparecem gentes de antes, em cirandas com o agora; manhã, fica um zumbido, que é o finzinho do sonho, insistindo em não se esconder.
Ele, diligente, encerra seu ofício na calada matutina, resgatando cenas às suas devidas caixas -que não baguncem os dias!- Descansa no acordar do sonhante, sempre em sorrateira vigília, capturando acontecidos.
Madrugada, um sortilégio sem cabimento tomou conta da caixa de sonhos, arremeçando-se nos cenários pitorescos do dramaturgo. E o feitiço atiçou personagens pachorrentos, velhacos, palpiteiros, e tantos outros, insinuando que zombassem dele.
Feito refém pelos algozes, incrédulo daquilo tudo, viu-se ali, atormentado, sem poder sequer acordar. No caleidoscópio surgia, impressionista, o retrato do seu cativeiro: um castelo de areias da praia, com janelas altas, de onde se avistava o desaguadouro de uma cachoeira de cristais na água do mar; no entorno, montanhas desafiando um horizonte traçado a régua.
Era conluio aquele, de loucos de dar nó. Queriam libertar o imaginário, abrir suas caixas, desordenar a casa. Em trapaça bem aplicada, ludibriaram o dramaturgo, trancafiando-o, amordaçando seus gritos, cobrindo-o de maltrapilhos. Preso por correntes de conchas, em punhos e tornozelos, nutrindo-se dos grãos de areia que se soltavam do teto do castelo: assim viveria, contando só a passagem dos crepúsculos, sujeito às próprias tempestades.
Tentava acordar-se, voltar pra casa; remexia-se todo, ferindo-se com as conchas. No enquanto, sonhos misturavam-se em estórias atônitas que, sem o tal, se escreviam. A bagunça foi tanta que até o sortilégio se assustou. Na caixa da loucura, vez, chegou um impresso, informando do estado da casa, que já confundia sono e vigília. Cenários atormentavam os sonhantes em seus acordares, viveres, sonhares.
Todas aquelas comédias, suspenses, terrores, dramalhões, num vendaval de fumaças que surgia em horas desmarcadas. E o dia e a noite tornaram-se longa seqüência de filmes, projetados em paredes episódicas... Libertos de suas caixas, sonhos, memórias, devaneios, segredos, diabos, ventos e tempos: todos invadindo a represa do insano, atirando-se em humores caudalosos, sem qualquer milícia.
Declarado Estado de Sítio, em nome do caos vigente. Um burocrata da Caixa da Loucura, que recebera o impresso, tratou de contratar, de imediato, novo dramaturgo para aquele caleidoscópio, sugerindo que terceirizasse os ofícios e renovasse os estoques das caixas. Que o antigo Rei, enlouquecido pelos devaneios, desaparecera entre as areias do castelo...
Betina Mariante Cardoso
nov/00- revisto abril 2006

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