Rara Observação
E havia o moço, a quem tanto agradava fitar, profundamente, o único quadro daquela parede. Era pintura nebulosa e clara. Vezes, incidindo a luz, via rostos, expressões, pensamentos. Nuvens, apenas. E a perversa sombra da ironia.
Fitava o quadro, aturdido entre cores. Não só. Movimentos, mudanças na textura da tela - ora espessa, irregular, ora lisa. E com mais viço, como recém-pintada. Intrigante era a acomodação dos homens nas cadeiras, sugerida nos contrastes. Não conheciam o que pudesse haver fora daquela pintura, nem sequer sabiam habitarem tal obra. Sabiam só certo desconforto, como o de quem é profundamente observado.
E lá o moço. Tantos olhares e cada vez mais. Quando não fitava, imaginava, reproduzindo as sensações. A moldura, traiçoeira, apagava-se da idéia. A real, em marfim, fios dourados e dobras precisas, como moldadas de propósito, em contornos minuciosos. Clara, contrastava com a cor de vinho tinto seco da parede - parecia um eterno lançar-se dali. No escuro do quadro, movimentos e expressões. A moldura, sempre soberba em torno da tela, atirando o expectador naquele espaço de sombra e interrogação.
Ainda assim, era cena interessante, que inundava o moço. Quantos viam a pintura, mas a cena parecia privilégio seu. Admirava por manhãs e tardes, sob diversas luzes. Impressionismo tão nublado, que só fitando além do seu interior para descobrir alguma nitidez nos traços.
Dia, de tão especialista na obra, pôde enxergar, nos homens, movimentos labiais, emitindo vocábulos, risos. Era momento novo neles, tão sisudos e argutos. Num jeito de olhar, o moço parecia seguir a conversa.
O aroma da pintura, entre o desconforto e a agradável sensação do nebuloso, mais intenso. Como ainda úmida a última retocada. E o moço imerso na cena. De tão imerso, já na conversa. Sim, foram tempos de profundas observações. Agora sabiam os homens terem sido perscrutados. Não pareciam desgostosos: ficaram à vontade, como em mesa de bar.
Os homens, menos sombreados, ali.
Surpreso, o moço, de tanto olhar o quadro, chamado a pular pra dentro. E foi. Nem bem entrou, pôde ver claros os rostos antes nublados. E de tão claros, perdiam-se os contornos. Ora, faces desenhadas por lápis de ponta muito fina e cor forte, com narizes e queixos definidos; ora, imagens aquareladas, como sendo vistas pelos olhos depende de quem vê.
E lá de dentro o moço via, mais salientes, as sutilezas daquela obra. Não bastou pular para o quadro: foi sentar-se com os homens, o moço imerso nas tintas, para ver, de lá, o próximo convidado.
Betina Mariante Cardoso
nov/99
Sunday, March 19, 2006
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