Monday, December 31, 2007
Para que amanhã possamos ensolarar o ano que nasce, puro de expectativas e silêncios bons- feito céu azul-, de horizontes longos ultrapassando nossos confins. Um ano que nasce sorrindo.
Feliz Dia!
Friday, December 07, 2007
Saturday, December 01, 2007
E eis que um novo ano vem chegando, e o sol tem colorido a transição.
Wednesday, August 15, 2007
Betina Mariante Cardoso
Pois deixe que me apresente. Posso dizer que sou moça diurna, de pouca idade, qualquer coisa entre os vinte e os trinta anos. O escuro não me apraz, embora tenha escolhido a noite para meu ofício. Por puro capricho, tão acostumada, que estava, com as horas do dia. Queria conhecer parte de mim que se escondia no breu. Sou desenhista de mapas de cidades, dedico-me em especial aos locais turísticos, situando o visitante nos quarteirões históricos e nas belas paisagens. Que imagino.
Confesso. Minto na maior parte dos meus desenhos. Mudo escalas e inverto os pontos cardeais. Não uso legendas, apenas desenhos artísticos das casas, museus, igrejas, praças. Muitos sujeitos, seguindo meus mapas, perderam-se, encontrando belezas fora do plano de viagem. Outros, descobrindo que menti, deixaram o mapa no banco do parque, e seguiram sozinhos a aventura. Já soube de alguns que se esqueceram de usá-lo, ou que nem sabiam como fazê-lo, e o guardaram como recordação. Com o tempo, entendi que meus desenhos bastam apenas para lembrar o viajante de onde está, deixando que descubra as escalas e medidas de seu itinerário. De si, a cada trecho. Nada de mal nisso.
Calculo com perfeição as distâncias, para fazer com que o turista se engane: caminhe à esquerda quando o museu será à direita, ande dez quadras quando o mapa aponta que são cinco. Travessuras. Desenho passantes em meus mapas, lojas de antiguidades que não mais existem, artefatos como luminárias antigas para produzir fantasias. A cada mapa, sinto o prazer de inventar histórias, as minhas. Eu, que nunca saí de minha cidade natal. Que trabalho nas horas claras e durmo nas escuras. Num sempre. Eu, de rotinas regulares. Eu, que sigo, aritmética, os ponteiros do relógio. Que conheço os rostos tingidos pela luz do dia, com todas as rugas e olhares, nítidos demais. Que conheço os riscos das folhas, retos, abrindo-se em praças circulares. Sempre. Eu, que desconheço a sombra.
Conto minha desventura, agora que me apresentei. Recebi encomenda para um mapa de um lugar estranho, de todo. Não turístico, não de negócios, nada de especial. Viagem marcada, disse-me o senhor que telefonou, de voz densa. Mês que vem. Os outros trabalhos deixei à deriva, na gaveta. Dedicação plena. Prazo, cronograma. Ponteiros precisos, insidiosos no aviso do tempo. Lápis coloridos, réguas de escalas, largas folhas, luz direta.
Por primeiro, estudei a cidade. Recorri a bibliotecas, Internet, jornais e revistas, todas as fontes. Não encontrei ninguém que tivesse visitado aquele lugar, que me pudesse contar algum fato, algum personagem típico, ou qualquer hábito corriqueiro. Nenhum crime sequer, nem romance ardente. Nada. Tinha dados objetivos, como a rua de negócios, a casa do prefeito, a praça, a Igreja, o Clube. Tudo era próximo. Sem imaginação. Sem história. Sem ruas a descobrir, ou qualquer lugarejo que fizesse o senhor lembrar de sua visita. O que, pela entonação de sua voz, não parecia fazer diferença.
Meu primeiro desenho real. A praça onde ela é, de fato. Casas em fileira, tons cinzentos, envelhecidos. Ausência do belo ou do inusitado. Ofício em linha reta, categórico. Eu, triste, em linha reta. Categórica.
E foi quando me dei conta de que era o momento de conhecer a noite. Mergulhar nela, regozijar-me do silêncio que oferece. Quem sabe pela aventura em atravessar-me, feito meus mapas. Acreditava na escuridão, ainda. No olhar adormecido das janelas vizinhas, no silêncio soberbo que encobre a passagem das horas pela madrugada. Sentia seu pulsar. O respiro da madrugada talvez inspirasse meu feito. Queria ver-me sozinha no escuro, acompanhada apenas pela luz fraca do abajur; em silêncio, ver surgir minha face insana.
Deveria desenhar às cegas. Em mim, o empuxe por desnortear-me, sem relógios ou bússolas. Que se danasse a cidade, o mapa, o senhor e sua visita burocrática. Não, não haveria sobre o que mentir, dessa vez. Nem qualquer gente com quem ele fosse conversar, nos arredores. Todos em solilóquio, em seu pedaço de rua.
Comecei o trabalho. O escuro foi impetuoso, desde o início. A volúpia pela cafeína, o afã de um percurso insólito, a pouca luz. Sentia-me rasgando com o corpo todo a passagem do tempo. Sujava-me toda com a tinta. A angústia daquela atmosfera enlouquecia meus braços e mãos, minhas pernas e tronco, que pintavam, ventríloquos, no branco da folha. Eram gritos de quietude, tantas as tintas que se esparramavam, silenciosas, sem qualquer ordem. Não havia mais linhas retas, círculos, casas corriqueiras. Imergi no vão do papel, onde tudo era cor, e só a noite em torno. Nenhuma notícia do mundo, nem das redondezas. O negro da hora emoldurado pela janela de madeira. Lá fora, nenhuma luz. A loucura chegando, enquanto eu procurava afastar-me de sua sombra. Buscava sons, aumentava as luzes, falava alto, espantando o monstruoso silêncio, que me surpreendia com seus urros. Percebia a ausência do mundo desperto. O sono chegava-me: sempre a taça de café.
A sala tornou-se um amontoado de folhas. Espalhei-me pelos mapas, dormindo, acordando, entardecendo-me para nova jornada e despertando, em fúria, para a escuridão. Era quando o mapa tornava-se curvo, ilógico, sem réguas ou cores primárias.
Descobri na primeira semana: tenho a noite no sangue.
Um mês, era o tempo para a entrega. Os primeiros dias foram de toda a ebulição, minhas carnes tomavam-se de movimento, atirava-me por sobre a tarefa, desperta, e ali não eram meus mapas, mas largas folhas com tinta esparramada. Os desenhos tornaram-se riscos, manchas, nós de cores. Os dias passavam, e a vigília, coberta pela névoa de inverno, trazia o hábito. A noite, então, circulava por mim e centrifugava-se em manhã, enquanto eu pintava. Eu era a loucura e era a noite e era a morte, quando deixava o pincel na folha e abandonava-me com ele por sua extensão. Não se via, porém, qualquer cidade, qualquer anúncio de um lugar que lembrasse a encomenda.
Mas o homem veio bater na porta, eram quase três da tarde, no meio do mês. O senhor da encomenda. Fechei a porta do atelier. Ele quis ver os mapas, disse que precisava estudar a localidade, preparar-se. Pegou-me de surpresa, isto sim. Queria programar o trajeto matutino até a prefeitura, e de pronto respondi que eram duas quadras à esquerda de quem chega na cidade, onde fica o hotel. Olhou-me, estupefato, e anotou, ainda elogiando minha memória. Perguntou da Igreja, para a Missa Domenical, e respondi que era visível do quarto do hotel, nos segundo andar, onde estavam os melhores aposentos. Saberia orientar-se. Indagou sobre a praça, a casa do prefeito, e assim por diante. As perguntas era corriqueiras como ele, previsíveis. As respostas, eu deixava que saltassem ao improviso. Mentiras ditas, as mesmas que desenhava nos mapas. Anotou tudo.
Ofereci-lhe um café enquanto conversávamos, ao que respondeu que não poderia aceitar, por ordens médicas. Suas falas eram quase soletradas, eu podia enxergar as letras, uma a uma, saindo de sua boca, em cantilena, um peso de chumbo. Moroso no jeito de falar, sensação que ecoava por toda a sala. Não me admirava que fosse conhecer aquela cidade insosa. Foi embora, fazendo um gesto cordial com o chapéu, num tom de “passar bem”, e repetiu que tornaria ali para buscar os mapas, no dia combinado. Em mim, o suor frio. Restavam-me duas semanas pra os mapas. Quatorze noites.
Há pouco, mencionei o hábito que a vigília me trouxera. Pois bem. O furor com que enlouquecera nas primeiras noites arrefeceu-se, e passei a desenhar o mapa para o sujeito, tal qual lhe havia dito em nosso encontro. A prefeitura a duas quadras à esquerda de quem chega na cidade, a igreja na altura do segundo andar do hotel, e todas as definições improváveis que referi, como quem conhece o lugar, com a intimidade de quem já dormiu em suas camas.
Terminei no dia combinado. Os rascunhos, mapas de minha loucura, guardei no armário de parede, que tinha uma tranca. Há quem possa perguntar das noites seguintes, se domestiquei o furor dos pincéis e tornei-me fidedigna ao traçado da cidade. Respondo. Fiz um mapa como os anteriores, desenhei os pontos conforme minhas mentiras, Nenhum norte-sul-leste-oeste. Nada. Sem cores, fiz tudo em nanquim. Ninguém nas ruas, cidade deserta de gentes, só ele e sua voz. Grossa, retumbante, abafada. No trajeto do hotel à prefeitura, fiz setas, bem como do segundo andar do hotel até a igreja. Numa cidade de quatro quadras, não se perderia. Foi-se o homem, em passos retos pelo corredor.
Semanas depois da entrega, retornou à minha casa, de cenho cerrado. Olhos ainda mais negros, queixo em desalinho, talvez pela aspereza que esboçava na face, e uma lástima nos riscos da testa. Estremeci. Disse-me que a cidade era mesmo como o mapa, localizou-se bem. Bom trabalho. Mas não era o que queria. Desejava era aquelas pinturas largas, coloridas, de folha inteira, que, à espreita, espiara-me pintando com o corpo nu nas noites da primeira quinzena.
Thursday, July 19, 2007
Sunday, February 25, 2007
Betina Mariante Cardoso
Chamei o paciente à porta, pelo nome. Ele, passos largos desde o banco do corredor à fria sala de consultas. Nos lábios, uma expressão enfadonha. Além, um olhar vago, como de quem avistasse cenas suas, apenas. De seus cinqüenta e poucos anos, calculei. Eu perscrutava, atenta, sua fisionomia sem viço e a pele branca, de uma textura feito cera, em tom pálido. Cabelos cheios, já com alguns fios de tom cinza. Desgrenhados, como um desleixo à sua figura. Bochechas fartamente preenchidas, com a queda natural do tempo. De formas indefinidas, talvez do desgaste pelas intempéries, o semblante lembrava um baú de guardados.
Fechei a porta. Antes que eu o convidasse a sentar, fitei-o, silenciosa, com discreta curiosidade. Instigavam-me seu cenho cerrado e a voz baixa, as poucas palavras na saudação, certo olhar de poucos amigos. Nas feições, as saliências que a memória imprime. A testa riscada a lápis, tão nítidas as rugas. Eu, incapaz de traduzir seu rosto.
Sentia-me pequenina frente à sua soberba. Alto, de compleição robusta, braços de contornos grosseiros. Aperto de mãos, sim. Forte, todo o peso do corpo nos ossos dos dedos. Homem de pouco sorriso, já se via.
Fiz gesto, com a mão espraiada, que se acomodasse. Sentou-se, gravemente. Pachorrento, ocupou toda a cadeira. Com ela, compunha uma unidade, imóvel em seus gestos. Parecia parte do inanimado. Mal abria os lábios para falar, e os olhos permaneciam mirando um horizonte só seu. Tronco e membros em conluio com a inércia da face.
Passei às perguntas, motivo da visita, sinais e sintomas médicos, questionamento formal. Suas falas quebravam o silêncio por segundos, respondendo e calando-se, como escutando, num outro plano, as próprias histórias.
Interroguei, por primeiro, dados de identificação. Circense. Resposta seca, áspera, tom de orgulho. Título que respondia pelo nome, idade, profissão, naturalidade e procedência, estado civil. Circense, repetiu em tom definitivo, ao meu olhar perplexo. Um silêncio me paralisou, e escrevi a informação em sua ficha, num pisar lento da caneta sobre a folha. Não poderia imaginar. Circense?, repeti, em dúvida. Ele completou, firme: cômico. Cômico de circo. Pareceu irritado com minha pergunta, fosse óbvio seu ofício, só pela figura.
Como na chegada, mirei, insistente, seu paradoxo. Não havia, naquelas feições, algum dado que me remetesse à imagem de um cômico de circo. Palhaço, ele afirmou, talvez percebendo minha hesitação. Cavoquei, nos meus registros de criança, a imagem do palhaço. Não era aquela. Tentei imaginá-lo no auge da mocidade, nem assim. Colocava suas formas no papel do domador de leões, quem sabe. Enquanto eu percorria meu interrogatório, o descompasso me instigava. Não me era possível desenhar-lhe as nuanças. Faltava-me algum dado, um pedaço da história fugia-me.
Minha atenção oscilava entre a escuta e as idéias sobrevoantes de criança. Olhos arregalados, tentando ater-me aos cuidados com sua saúde. Perguntas precisas, respostas das quais nem lembro. Sondava, em sua máscara imóvel, minhas lembranças, como querendo acreditar no inusitado que me afrontava. O homem respondia contrariado os itens formais, conforme eu avançava. Remédios, doenças. Palpitação?, indaguei-lhe. Ele continuava ao longe, como imerso em suas histórias. Tive vontade de entrar também, fechar os olhos, ouvir a música que anunciava o início do espetáculo, sentir o som da pipoca estalando entre as filas de espectadores.
Nessas alturas, as questões médicas ficaram, pra mim, em segundo plano. Deitei a caneta ao lado da folha, desliguei-me da hora. Quis ouvir, na voz farta, as peripécias do sujeito. A luz branca da sala me impedia de figurar o chão de terra, as luzes coloridas, a tenda amarela. Tentava, com todos meus sentidos vivos, tocar a cena. Ele, nenhum sorriso, sequer esboço. Seus olhos, no entanto, me convidavam à arquibancada. Eu, sem saber bem por que, passei ao picadeiro. Palhaço sem mímica, mais me assustava.
Feito menina de meus cinco anos, suja de algodão-doce, me confortei no assento de plástico das fileiras. Esperava o início do espetáculo. Sentia-me, ali, parte do RESPEITÁVEL PÚBLICO!. Começou a contar-me da vida itinerante, entre dias ébrios, outros melancólicos. Vezes, largava o público, puro enfado de sorrir tanto. Apresentou-me seu personagem.
Desde sempre, palhaço de circo. Nasceu naquele redondo de terra, quando a mãe deu-lhe existência, perdendo a própria. Gorda, mais ainda pela gravidez, largava-se na vida mundana, com a criança na barriga e tudo. Vestidos largos, soltos. Risada frouxa. Bebidas, farras, paixões tortuosas. Todo jeito de cigana, lia a sorte. Mal inexplicado, cerrou de súbito os olhos. Sem testamento. Sem pai conhecido. O menino foi salvo no parto, criado na vida mambembe. A história da mãe construída em mosaico, contada lá e cá, pedaços faltando.
Virou o mundo, disse. Caretas, tombos, cambalhotas. Saltos do globo da morte, piadas, deboches de gentes conhecidas. Fez de tudo. Mostrou-me marcas de luta travadas com animais ferozes, recordou-se de sua destreza com os malabares, contemplando, ao longe, sua própria imagem.
Cenário montado, luzes poucas, olhos expectantes. Iniciava a noite com suas peripécias, era o que mais gostava. Risos muitos que despertava em crianças e adultos, avós, babás. Histórias que tinha para si. Eu escutava, apenas.
A atmosfera do picadeiro trouxe à consulta a tonalidade de suas reminiscências. Cômico, dizia ele, em tom sério, respeitoso, honrado. Enquanto a voz rouca já tingia a sala de cores vivas, eu mirabolava percursos, personagens outros, largas horas de circo. Rodopiava com ele pelos giros do tempo.
Momento, tudo silenciou. Então, éramos outra vez nós dois, ali, sem qualquer outra iluminação, senão a luz branca, fluorescente, séria, da sala de consultas. O homem fitou-me, severo. Nenhum som, apenas aquele da gravidade de seu olhar. Desviou-se, mirando um ponto na parede, sem nada dizer. De pronto, a voz grave tomou-se de fantasia, esboço de sorriso.
-Naquela noite, decidi surpreender a todos expectadores, colegas, até ao picadeiro. Não contei a ninguém, reservei a mim mesmo o deleite da produção. E iniciei, sem música, pleno silêncio, o espetáculo. Percorri o círculo de terra montado em nosso elefante, de um cinza claro, soberano. Eu, de branco, todo branco. Figurino, maquiagem. Vestia um chapéu sóbrio, da mesma cor, com uma fita preta de cetim em seu detalhe. Podia escutar os murmúrios da platéia, as palmas que iniciavam a tocar, gritos clamando meu nome, o clec das palmas aumentando, até tomar toda a tenda, a quadra, todo o ar. Imponentes, mantínhamos a incógnita, enquanto o som retomava a calmaria. E então veio o silêncio. Quando abri os lábios para apresentar a noite, quem falou foi o elefante, qual ventríloquo, voz estranha, retumbando em tom alto, fazendo-se ouvir. De mim, nenhum som, era como se ele adivinhasse minhas falas, minhas piadas, meus deboches. Roubara-me o espetáculo. O público voltou a bater palmas, e tantas, ao número que dava início ao circo, sem saber que a mim também era surpresa tal inusitado. E a noite transcorreu com seus trapezistas, malabarismos, brincadeiras, engolidores de fogo, mulher barbada, e a perene seqüência da programação, toda apresentada pelo animal.
Eu, em silêncio. O sujeito seguiu, fitando meus olhos, pedindo, com a mirada, que eu acreditasse em seu relato.
-Dali em diante, meus lábios abriam, mas, perplexos, não emitiam voz. A minha voz. Destino infeliz o meu, Doutora. Descobrir tal dom fez-me sentir palhaço de mim, surpreso por minha própria invenção. Voltei a falar, sim, mas vez que outra a maldição me prega uma peça, e a fala não sai de minha boca, mas de algum objeto. Ventríloquo? Em toda essa vida nunca tive este papel no circo, e apresentar o espetáculo era minha intensa paixão, que nem consigo mais desempenhar com apreço. Volta e meia, em casa, na tenda, em qualquer parte, ouço meus pensamentos saírem por outro veículo, que não meus lábios abertos. Poderia, agora, silenciar, e esta cadeira preta, solene, falaria por mim, dizendo toda sorte de desvairios, tomando-se de vida própria. Já não sei se é maldição, dom ou loucura.
Saturday, February 24, 2007
Per gli antichi Romani Febbraio era considerato il mese in cui ci si preparava all'arrivo della primavera (ritenuta la stagione della rinascita).Si iniziavano i riti della purificazione: le case venivano pulite e vi si spargeva del sale ed una particolare farina. Verso la metà del meseiniziavano le celebrazioni dei Lupercali (dèi che tenevano i lupi lontanodai campi coltivati).I Luperici, l'ordine di sacerdoti addetti a questo culto, si recavano allagrotta in cui, secondo la leggenda, la lupa aveva allattato Romolo e Remoe qui compivano i sacrifici propiziatori. Il sangue degli animali veniva poi sparso lungo le strade della città, come segno di fertilità. Il vero "evento" per la gioventù romana di allora era però una specie dilotteria dell'amore. I nomi delle donne e degli uomini che adoravano questo Dio venivano messi in un'urna e opportunamente mescolati. Quindi un bambino sceglieva a caso alcune coppie che per un intero anno avrebbero vissuto in intimità affinchè il rito della fertilità fosse concluso. L'anno successivo sarebbe poi ricominciato nuovamente con altre coppie.Nel 496 d.C Papa Gelasio annullò questa festa pagana sostituendola con quelladi san Valentino vescovo, martirizzato dall'imperatore Claudio II in quanto univa in matrimonio giovani coppie alle quali l'imperatore aveva negato il consenso. Prima della sua esecuzione, Valentino che si era innamorato dellafiglia del suo carceriere, le scrisse una ultima lettera firmandola "dal tuo Valentino" frase che è arrivata fino ai nostri giorni. Nonostante siano passati tanti secoli, questa festa ha sempre mantenuto il significato di celebrare il Vero Amore. Le vicende riguardanti San Valentino sono abbastanza confuse, ma intorno alla sua figura ruotano molte leggende, che hanno senz'altro uno sfondo di verità, e che riguardano tutte episodi d'amore.
La leggenda
... il tentativo della Chiesa cattolica di porre termine ad un popolare rito pagano (per la fertilità), è l' origine di questa festa degli innamorati.
Fin dal quarto secolo A. C. i romani pagani rendevano omaggio, con un singolare rito annuale, al dio Lupercus. I nomi delle donne e degli uomini che adoravano questo Dio venivano messi in un'urna e opportunamente mescolati. Quindi un bambino sceglieva a caso alcune coppie che per un intero anno avrebbero vissuto in intimità affinché il rito della fertilità fosse concluso. L'anno successivo sarebbe poi ricominciato nuovamente con altre coppie.
Determinati a metter fine a questa primordiale vecchia pratica, i padri precursori della Chiesa hanno cercato un santo "degli innamorati per sostituire il deleterio Lupercus. Così trovarono un candidato probabile in Valentino, un vescovo che era stato martirizzato circa duecento anni prima.
La leggenda
A Roma, nel 270 D. C il vescovo Valentino di Interamna, (oggi è la città di Terni), amico dei giovani amanti, fu invitato dall'imperatore pazzo Claudio II e questi tentò di persuaderlo ad interrompere questa strana iniziativa e di convertirsi nuovamente al paganesimo. San Valentino, con dignità, rifiutò di rinunciare alla sua Fede e, imprudentemente, tentò di convertire Claudio II al Cristianesimo. Il 24 febbraio, 270, San Valentino fu lapidato e poi decapitato.
La storia inoltre sostiene che mentre Valentino era in prigione in attesa dell'esecuzione, sia "caduto" nell'amore con la figlia cieca del guardiano, Asterius, e che con la sua fede avesse ridato miracolosamente la vista alla fanciulla e che, in seguito, le avesse firmato il seguente messaggio d'addio: " dal vostro Valentino, " una frase che visse lungamente anche dopo la morte del suo autore...".
Sunday, February 04, 2007
-Reticências só na semana que vem. Encomendei, mas tem muitos pedidos na frente.Tem que deixar o nome, pra reserva. O lote é pouco. Pontos de interrogação, então, prometeram só para mês que vem, que esgotou o estoque do fornecedor. Todo mundo pedindo. Tem saído muito. Tem 'dois pontos', quer? Pensei. Não sabia bem onde usaria, e pra levar 'dois pontos' tem que ser de meio quilo, ele advertiu.Nem sabia explicar o motivo. Tive impressão de que era para fazer bom negócio.
Resolvi perguntar por ponto-final, ele disse que estavam na estante do fundo, acreditava que tinham passado da validade. Iria buscar. Eu, ansiosa à sua espera, batia com a polpa dos dedos uma música qualquer na madeira gasta do balcão, enquanto ele procurava nas sacas de juta. Gritou, voz cáustica, lá de trás das prateleiras:-Faz tempo que o pessoal não compra, ficou lá. Mas era até dezembro. Venceu há tempos. Vou ter que jogar fora e encomendar de novo.-E exclamação?-Eu tinha no estoque, ficavam nas sacas de algodão. Esses dias veio uma dona cheia de caprichos, e levou tudo.Contemplativa, cogitei:
-Todas as receitas cheias de firuletes, ‘comprar reticências frescas’, ‘deixar em banho-maria’, ‘preparar em fogo baixo’, ‘cuidar para não dissorar’, ‘despejar na panela com pacimônia". Já vi muito freguês perder a compra por não ter lido bem as indicações. E mais: devem ser usadas no dia, isto sim, mas o sabor fica por tempos infiltrado na preparação. Salpicar, de leve! Sua presença vai adquirindo personalidade aos poucos, não pode tomar conta do prato principal.
Pensei então em qualquer outra, menos procurada. De receita mais fácil, algo pra descongelar, e servir. Sem firulas.Ponto-e-vírgula ele me disse que tinha que importar, não tinha aqui. A estas alturas, queria era levar algum pacotinho dali, fosse o que fosse. Caminho longo, a pé, pra retornar de mãos vazias.-...Ponto-e-vírgula?... Ninguém usa muito, sabe como é. Pouca serventia. Acabo investindo naqueles mais procurados, como os três-pontinhos. Já aconteceu até de me fazerem abrir as sacas de pontos-finais e pedir pra levar três. Fica mais caro, levam mesmo assim. Dizem que têm de serem compradas no dia, para usar. Por isso acabam logo. Sobram pontos-finais, que ninguém leva, acabam fora da validade.Curiosa, olhei para os potes de vidro, em cima do balcão: vários travessões. Recipientes volumosos, tampa de alumínio. Ali, feito aquelas balas coloridas da infância, que o dono pegava às mancheias pra depositar no saco plástico, os travessões.
-Ninguém mais leva travessão, nessas épocas, minha senhora. Pra levar travessão tem que saber usar, só vendo no mínimo dois, e então o freguês deixa ali.Seguiu tergiversando. Voz arrastada, um jeito ruminativo. Mesmo tempo, soberba de velho negociante.-Todo mundo fala sozinho, mesmo. Estão naqueles potes há horas. Tem mais uma coisa, ficaram os dois pontos também, que vendo junto, mas sobraram do ano passado. Dois pontos e travessão sempre restam, esperando alguém que queira conversa. São caros, vendidos à granel, e a medida nem sempre é exata. Um travessão a menos e a conversa fica pendurada.Avistei os dois-pontos em pote semelhante, de vidro, redondo, a tampa clara. As balas de todas as cores, gosto de framboesa, uva, laranja. Não, não eram doces.Pensei em parênteses. Indaguei-lhe.-Precisa de um certo tom de gravidade, um tom de confissão, justificativa. Nem sei. Complicado.Aspas, quem sabe, cogitei.-Difícil sobrar. É muito procurado pra citar alguém, usar palavras dos outros, chega todos os dias no carregamento, mas sempre tem gente que vem e leva tudo de uma vez. Estou sempre pedindo. Amanhã já chega para o estoque da semana. Pra levar, tem que vir cedo.Sem saber o que fazer, encomendei 500g de pontos de interrogação, do que chega no próximo mês. Uso um pouco e deixo o resto no armário. Vale a pena, disso estou certa. Fui andando, sem meu pacotinho de reticências para a receita do almoço. Levei uma quantidade razoável de dois pontos-travessão, dos que estavam ali nos potes, e ainda na validade. Sempre é bom ter em casa.
Saturday, February 03, 2007
Il Giorno di Domenico non è stato la Domenica, ma il Lunedì...Non è nemmeno stato un giorno di sole: pioveva. Nemmeno un giorno, ma tardi alla sera. Non in qualche caffè della città, ma per strada, mentre io tornavo a casa dopo un paio di ore di far- niente.
Comunque, sarà sempre il Giorno di Domenico il 14 Giugno. Camminavo in fretta, erano già le dieci di sera. Prima, magari. C´era il buio. Camminando, ho visto qualcuno che veniva indietro. Spaventata, io? Camminavo, senza fermarmi. Il qualcuno lì, camminava anche lui. Ho passato dal marcipiedi, lui pìu prossimo. "Non sei Italiana, vero?"
Così, ci siamo conosciuti, nel buio. In pochi minuti,tante parole. Napoletano, lui. Io provavo di capirlo e di parlare l´Italiano, in mezzo al mio spavento. "Prenderesti un caffè, con me, qualche giorno?", ha detto lui, giusto all´angolo. "Si, Volentieri!", gli rispondo. Abbiamo cambiato dei recapiti uno dell´altro. Avevo un pezzo di carta, piccolino così, dove, ricorderò sempre, ha scrito il suo telefono. Non ce l´ho più, purtroppo. Soltanto il ricordo del momento. Il numero, lo guardo in memmoria.
La sera presentava un´aria fresca, veniva voglia di non tornare a casa. Guardare il Lungarno, seguire la mia caminata.
Pensieri su questo futuro caffè, lentamente,mi facevano già personaggi di una storia da raccontare.
Nell´incroccio fra Via Santa Maria e Lungarno Antonio Pacinotti, io sarei andata a sinistra, abitavo lì vicino; lui, a destra. Così, ci siamo salutati: "Ciao!" , "Ciao!"
Nel pommeriggio del 17 Giugno, Giorno Festivo a Pisa. San Ranieri. La serata prima è stata la Luminara di San Ranieri, nei Lungarni Pisani. Delle luci delle candelle portando tutti alla fantasia. Lui mi scrive invitando, lo rispondo di sì.
Ancora pommeriggio, ho caminato sola, guardando la Festa. Una bella giornata, quella...C´era sole, i dolci- un dolce di mandorle, dopo una granita di menta- la gente, dei palazzi dei Lungarni, in tanti colori diversi...
L´Arno, alle sei di sera, era già d´argento, bellissimo, ricevendo la Regata. Ed io, mentre guardavo, pensavo su di tutto. Pensavo a Domenico, in cosa si parlerebbe, se me la caverei bene con l´idioma. Nei dubbi, sull´Arno, sul buio che arrivava, piano piano. Pensavo a Napoli, a Pisa, a Porto Alegre. Pensavo a me. E anche a quanto era bello l´Arno nel tramonto! Quello non vedrò uguale, lo so.
Mi ha detto lui: "Ci troviamo alle 21:30, nella Via Santa Maria, dove ci siamo conosciuti. Poi, andiamo al Caffè.", ascoltavo, mentalmente, vistita in blu.
Mi ricordo dei nostri abbigliamenti, il colore della sera (c´era già meno del buio dell´altro giorno, il Giorno di Domenico, oppure ero io meno spaventata...). Lui è venuto subitamente a salutarmi, non l´avevo visto prima. E ci siamo andati a camminare un accanto all´altro. Mentre camminavamo, abbiamo fatto pìu di due chiachere...ma tante...Parlavamo, caminavamo, fra un riso e l´altro. Dicevo, sbagliandomi:"Como?", quando non capivo qualche espressione diversa.
E, uguale a tutte le storie d´amore, le chiacchere sono finite con un bacio. Un grosso bacio, nel Lungarno Pacinotti. Bello!
Racconto prima: stanchi di caminare, ci siamo seduti nella Piazza del Vettovaglie- dopo un lungo percorso- a prendere qualcosa da bere...Lui, un caffè...Io, la Coca-Cola...Pìu lunga, per dare alle due chiacchere una durata anche più lunga. Per dare ai miei pensieri ed al mio spavento un tempo lungo quanto la lunghezza della nostra caminata, quanto la lunghezza del bichiere di Coca, quanto la lunghezza del mio desiderio, ma anche dei miei dubbi. Lo guardavo, e guardandolo, ho percepito i suoi occhi neri. Lì, c´era il buio misterioso della serata del Giorno di Domenico. Lí, mentre provavo ad indovinare cosa c´era indietro a quelli occhi scuri, mi è venuto in mente il cancello del Palazzo Agostino, dove abitavo. Così scuro, misterioso, così nel buio, come gli occhi di Domenico, che non troverò mai uguali, così intensi.
Via Santa Maria, Ponte Sofferino, Lungarni, Corso Italia, Ponte di Mezzo, Borgo stretto, Piazza del vettovaglie, Lungarni, Piazza Carrara, Piazza Dante, Lungarno Pacinotti, Lungarno Pacinotti, Lungarno Pacinotti...E tante belle parole. L´ accento napoletano: bello, marcato. "Devi sentirre il tuo cuorre".
Mi ha insegnato la differenza fra Buongiorno e Buona Giornata...
E tanti baci.
Ci siamo fatti un saluto amaro, nel fine di un paio di giorni. Prima, Via Santa Maria; mentre, il corso del romanzo; alla fine, l´amaro di un saluto triste. Perchè, non saprò mai. Magari sarebbe un saluto ancora pìu triste se fosse proprio alla fine, proprio quando sarei andata via.
Non saprò mai, oppure posso indovinare tante fine diversi...
Mesi dopo, ho preso un´aereo a Roma.Lui, un treno. Un bel ritrovo, tante chiacchere, tanti baci, tante da dire. Nel´arrivederci, "ci vediamo l´anno prossimo!" Ed il mio pianto, mentre mangiavo un risotto al formaggio. Purtroppo, non sono pìu tornata. E non ci siamo pìu visti.
Per tante volte, ci siamo sentiti.
Oggi, penso come fosse un libro di racconti, dove ogni storia ha il suo fine, e la prossima la segue, e così vìa.I nostri recapiti telefonici, ce l´abbiamo ancora. Ascoltarlo dire "Bella!" fammi sempre tornare alla prima pagina...
Betina Mariante Cardoso
Ago/2004
Feb/07
Friday, January 26, 2007
João e Maria
Agora eu era o heróiE o meu cavalo só falava inglêsA noiva do cowboyEra vocêAlém das outras trêsEu enfrentava os batalhõesOs alemães e seus canhõesGuardava o meu bodoqueE ensaiava um rockPara as matinês
Agora eu era o reiEra o bedel e era também juizE pela minha leiA gente era obrigada a ser felizE você era a princesaQue eu fiz coroarE era tão linda de se admirarQue andava nua pelo meu país
Não, não fuja nãoFinja que agora eu era o seu brinquedoEu era o seu piãoO seu bicho preferidoSim, me dê a mãoA gente agora já não tinha medoNo tempo da maldadeAcho que a gente nem tinha nascido
Agora era fatalQue o faz-de-conta terminasse assimPra lá deste quintalEra uma noite que não tem mais fimPois você sumiu no mundoSem me avisarE agora eu era um louco a perguntarO que é que a vida vai fazer de mim
O que será (À flor da pele) Chico Buarque/1976
O que será que me dá Que me bole por dentro, será que me dáQue brota à flor da pele, será que me dáE que me sobe às faces e me faz corarE que me salta aos olhos a me atraiçoarE que me aperta o peito e me faz confessarO que não tem mais jeito de dissimularE que nem é direito ninguém recusarE que me faz mendigo, me faz suplicarO que não tem medida, nem nunca teráO que não tem remédio, nem nunca teráO que não tem receitaO que será que seráQue dá dentro da gente e que não deviaQue desacata a gente, que é reveliaQue é feito uma aguardente que não saciaQue é feito estar doente de uma foliaQue nem dez mandamentos vão conciliarNem todos os ungüentos vão aliviarNem todos os quebrantos, toda alquimiaQue nem todos os santos, será que seráO que não tem descanso, nem nunca teráO que não tem cansaço, nem nunca teráO que não tem limiteO que será que me dáQue me queima por dentro, será que me dáQue me perturba o sono, será que me dáQue todos os tremores me vêm agitarQue todos os ardores me vêm atiçarQue todos os suores me vêm encharcarQue todos os meus nervos estão a rogarQue todos os meus órgãos estão a clamarE uma aflição medonha me faz implorarO que não tem vergonha, nem nunca teráO que não tem governo, nem nunca teráO que não tem juízo
Thursday, January 25, 2007
Sob o vidro do relógio.
Eixo ou descompasso?
Traços de tempo,
Em saltos, cruzo os ponteiros.
Intersecção.
Volto a mirar adiante.
Lenta vertigem.
Solto uma das mãos,ao ar livre.
Repouso.
Observo o entorno,
Contemplo o tempo.
Betina Mariante Cardoso
Monday, January 08, 2007
Lusco-fusco entre sono e vigília.
Atravesso porões, subo escadas, abro portas.
Corredores longínquos,
escuros, atordoados.
E novas portas.
Silêncio, tantos rumores.
Desperta ou em sonho,
Lembro de algo.
Esqueço depois.
Gentes que nunca vi, lugar estranho.
Máscaras de conhecidos, frases sem nexo.
Caminho neste labirinto, ajeitando o travesseiro.
Claridade
Parece vir dum cômodo.
Cenário tortuoso.
Luzinha trêmula
veste de antigo o meu sonho,
reflete-se na cristaleira,
pinga cores na sala vazia.
Na inquietude da luz.
Zigue-zague
da loucura à sanidade.
Desperta e sonhando.
Ruidoso silêncio,
quietude dos rumores.
Escuro do sono,
na iluminação indireta da vigília.
Desassossego que me acorda do sonhar.
Betina Mariante Cardoso
Sunday, January 07, 2007
Edimburgo, Escócia. Lynedoch Place. Letras em negro na placa sóbria. Uma lomba tênue. Em fileira, dez casas, todas iguais. Pedras de um cinza escuro, chumbo. A cor da cidade, se vê. Lado a lado, jardins particulares, portões de ferro, números pouco à vista, acima das portas brancas. Elegância lúgubre. À volta, um tom de sol, céu fosco. Um ar escondido.
Procuro o Bed & Breakfast de Susie e Andrew Hamilton. Aquela espécie de hospedagem domiciliar em que os donos da casa recebem toda sorte de visitantes para dormirem em seus cômodos. E, manhã cedo, idiomas e ofícios encontram-se na mesa da sala de refeições, em conversas sobre o tempo ou a geléia da confeitaria vizinha.
O motorista do táxi deixa-me ali, íngreme, com a bagagem.
-Deve ser esta a casa, ou a próxima. Tem o número?
Faço que sim, com a cabeça. De palavras, muda.
-É uma destas. Terá que procurar. Boa tarde.
Respiro. Aperto os olhos, na tentativa de fixar o número. Confiro com o registro a lápis, na folha de bloco. Lynedoch Place, 16. Aqui.
O portão já envelhecido, preso com um arame frouxo. Abro, trazendo meus pertences para o jardim. Arrisco uma escadinha, externa à casa, logo abaixo. Observo uma peça. Antiga, parece. Porta de madeira, única. Na maçaneta, o azinhavre. E na fechadura. Tento entrar, trancada a porta. A janela, graciosa, no ângulo. Cortinas claras, voal. Luz pouca. Insinuadas, sombras nuas. Mobília, quem sabe. Ou vestígios ainda quentes, de corpos.
Sem pistas, subo à porta principal. Presa por durex, uma folha branca dobrada, com meu nome.
-Cara hóspede, não pude esperá-la, lamento. Por uma urgência, fui ao centro da cidade. As chaves estão sob o capacho. A verde serve à entrada (porta branca), chave geral. A cinza abre a segunda porta, de vidro. Abrindo-a, deverá descer ao andar inferior, onde há vários cômodos. Seu quarto será o último à direita. Retorno às 17hs, espero encontrá-la. Temos leite e frutas na geladeira, fique à vontade. Atenciosamente, Susie Hamilton.
Levanto o capacho, estendido rente à entrada. Sim, as chaves. Duas, a verde e a cinza. Verde, porta de entrada, branca, solene. Cinza, a de vidro, convidando ao interior da casa. Se bem que percebo uma terceira, menor, presa ao meu chaveiro. Não sei de onde é. Sem importância, acredito. Entro. Quartos sem fechadura, minha maçaneta presa por preguinhos frouxos. O único cômodo trancado é a peça de baixo, acesso externo, pelo jardim.
Móveis de estilo, aconchego. Cores quentes, perfume de casa. Um carpete de pisar silencioso. Sons abafadiços. E ninguém. Saio à rua. Segunda-feira, 16:15, pelos relógios do comércio local. Tudo na cidade parece silente. Trajes sérios pelas calçadas, poucas vozes. Retorno ao Bed & Breakfast.
Uma camareira, avental rosa pálido, me recebe. Perguntas, listas, orientações, ressalvas. O horário do café da manhã, se bacon e ovos. Ausente a dona da casa, e já passa das cinco da tarde. Ao fundo, atmosfera intocada. A perfeição do estático, nem o pó em movimento. Me aborreço. Nada acontece. Pelos andares, adornos simpáticos e convidativos, em pouca vida.
Todos os quartos ocupados, hóspedes em passeio ou a negócios, explica a moça de rosa. 18:15, no belo relógio da sala de refeições. Peça de antiquário, escura, pêndulo cá e lá. O aviso do tempo, a cada hora. Ela me alerta, impassível:
-Deve sair para jantar. A cidade se apaga às 20hs.
À rua, caminho displicente. Sem mapa, percorro vias e praças. Alheia a tudo , passos em monólogo. Carrego as chaves comigo, e o endereço. Lynedoch Place, 16. Na bifurcação, à esquerda, a sexta casa. Estou na avenida principal, prédios altos, renovados. Na esquina, o Castelo. Contraste fulminante. Sigo, na estranheza do cinza. Dispersa, aquela névoa plúmbea.
-Sopa de aspargos e coca cola. Cinco libras.
Entrego as moedas à moça do caixa. O som do metal no balcão de fórmica me desperta. Ela sorri, compadecida de meu olhar entediado.
Falta de rumores, vento morno. Um crepúsculo laranja claro, paralítico. Sinto uma chuva rala, solitária. Poucos caminhantes. 20hs, imagino. Reencontro as chaves, dormindo na bolsa. Repito as etapas de abertura das portas. Abro a primeira entrada. Hora de dormir.
Sono leve, e o desconforto de uma cama estranha. Na fronha, aroma adocicado, produto de limpeza. Acordo, com a lembrança das frutas e do leite, na cozinha. Do bilhete na porta. Subo.
Sala de refeições, porta entreaberta. Conheci na chegada, à tarde. Grande, imponente, móveis escuros. A mesa, longa. O espaldar alto das cadeiras, as janelas em arco. E rumores, agora. Noite, uma hora da manhã. A conversa não respeita as paredes. Falam num escocês típico. Uma discussão em andamento, ouço apenas parte. Não consigo espiar.
Diálogo e pausas intercalam-se. Um homem esbraveja, em tom solene. Cada frase, um veredicto. Voz áspera, sotaque definido. Alguma presunção. Inquieto.
- Eram duas da tarde. Dormias. Lembro de ter visto as chaves junto às tuas roupas, caídas ao lado da cama. Bati a porta por fora, sem chavear.
Uma voz de mulher balbucia, trêmula.
-Sim. Acordei a tempo vestir-me. Tranquei a peça. Logo subi pela escadinha. Larguei a chave em algum ponto da casa, só pode ser.
Contemplam-se, imagino.
Ele ri, irônico. Escuto.
Ela, frágil. Titubeia. Pelo silêncio, construo a cena. Deve estar mirando algum ponto ao longe, esforço de lembrança.
-Fiquei certa de tê-las trazido comigo, no bolso do avental. Não sei onde ficaram.
Ele murmura algo, tom ríspido, burocrático. Olhar pungente, calculo. Então, de súbito, amacia a voz, denúncia do encontro das peles. Distraídos, encostam-se no piano, aberto. Fás e dós compõem sinfonia tórrida.
A porta, encostada, permite que eu apenas escute.
Fecham o piano, calados. Som seco, do tampo de madeira. Arrependem-se da aproximação ruidosa, àquela hora. Hóspedes dormindo.
Deixo para trás o assunto. Um copo de leite frio me acompanha. Abro a porta do meu quarto. Tinha esquecido o abajur aceso, na escrivaninha. Penso na cena. Ele, sotaque rouco. Ela, voz baixa, doclidade ambígua.
Dia seguinte, reconheço a voz do homem no café da manhã. O mesmo que, tarde da noite, clamava com insensatez. Serve-se de torradas e geléia, menciona o friozinho atípico neste início de verão. Dias sem sol, vento forte. Cedo, seis e meia. Comentários esparsos, como fazendo sala para mim. Poucos acordados na casa. Me indaga banalidades, entre os goles de café escuro. Ele, um. Eu, outro. Apenas nós dois, em cantos opostos da mesa. Sem assunto, ecoa o som surdo da faca passando manteiga no pão tostado.
Uma voz feminina, doce e maliciosa, arranha o silêncio, anunciando os croissants, ainda quentes. Num Bom-Dia distraído, as polpas dos dedos tocam o ombro do hóspede, amassam-lhe o colarinho, com alguma intimidade. De súbito, ela me perscruta, num sorriso cerrado, sem jeito. Não me sabia ali.
O senhor quieto, soberbo. Disfarça. Comenta a sempre adequada temperatura do café. Ela, uma senhora, seus cinqüenta anos. Desenho de cicerone cuidadosa. Rechonchuda, maquiagem demais para aquela hora da manhã. Apresenta-se a mim, com leve aperto de mãos. Susie Hamilton. A dona da casa. A família mora na cabana de trás, se eu precisar.
Sustenho o impacto. Eram as vozes da sala de refeições, noite passada. Susie, proprietária do Bed & Breakfast. Ele, um hóspede, cativo freguês, parece. Cenário tortuoso. O piano, o relógio, a cristaleira antiga, e muitas fotos de família. Ela e o esposo, ainda novos. Os filhos. Retratos do casamento. Fotos da Festa de Natal, há um ano.
Outros hóspedes ocupam a mesa, amenas saudações. Sons de louça, mastigares polidos. Chega a esposa, suponho. Um cheiro de talco e laquê, num coque recém-feito. Beija-lhe o rosto enquanto, complacente, passa-lhe a mão pelos cabelos brancos. Curva-se, expondo os seios mal cobertos, leve blusa de Organdi azul. Debruça-se por sobre o homem. Anúncio de propriedade. Ele, sisudo, destoa da imprudência da noite passada. Um Bom-Dia curto, interrompido pelo sorver do café. Ela às lojas, ele aos negócios, comenta a senhora, com fala estridente. Senta-se à mesa, a seu lado.
Saio. Com certa picardia, deixo um tom de segredo na chapeleira da entrada. Enfim, algum acontecimento.
A rotina da cidade gira. Durante o dia, passeios. Na casa, o tempo imóvel, à espera das chaves. Impossível o encontro furtivo. Perdeu-se o conjunto que abre a peça de sempre. A casa, que ontem parecia inerte, toma-se de ruído abafado.
Percebo ânsia na dona da casa, quando retorno no final da tarde. Indiscreta, encosto o ouvido na porta.
Na cozinha, ela arfa ao telefone, aspirando a própria voz.
-Quando saí da peça, pela tarde, peguei as chaves no chão, ao lado das roupas. Deixei-as no bolso do avental. Em seguida, tomei nas mãos outro chaveiro, para deixar à nova hóspede. Joguei no bolso, junto com caneta e papel, para o bilhete. Pus sob o capacho, por engano, nosso conjunto, o único que tem três chaves. E como pedir a ela, que hoje presenciou nossa aproximação, no café? Acho melhor termos cautela.
Apreensão. Susie ressente-se do descuido. Imagino, pelo tom de voz.
Com o que agora sei, toco no meu chaveiro, sem olhar. Sinto, então, a terceira chave. Aquela, menor. Fico surpresa. Por um equívoco, carrego, no compartimento interno da bolsa, a ocupação velada da peça de baixo. Esperam pelas chaves, que, sabem, estão comigo. Pedí-las, no entanto, pode parecer suspeito.
Lembro de como cheguei, ontem. O jardim. A escadinha externa. As cortinas claras, a mobília pouca, a luz apagada. O azinhavre, na maçaneta e na fechadura. Quem diria.
Alguns dias de silenciosa inquisição, entre saborosos croissants e goles de café passado. Entreolham-se, a cada manhã desejosa. Assisto à sombra dos quereres, circulando ali. As chaves, agora, minhas.
Uma semana. Largo o chaveiro na banqueta. É madrugada, o táxi me conduz ao Aeroporto. Com brejeira satisfação, deixo um bilhete, agradecendo a hospedagem. Voltarão a abrir a porta da peça de baixo, empoeirada. Mas só quando o dia acordar.
Tuesday, January 02, 2007
Homem alto. Impressionista. Feito de traços, pinceladas distintas, curtas. De longe, imagem composta. Belo, de claridade volátil. Turvo, quando visto de perto, em toques de cor pura. Figura sem nitidez. Aproxima-se, e o que se vê são borrões, lado a lado. Semblante em desalinho. Parece feito a olho, num relance. Como alguém que passou por ali, em passos rápidos. Num breve vislumbre, como uma notícia de seu caminhar, é pintado pelo artista de rua. Transitório, seu estado natural. Pontos vivamente coloridos, mosaico de tintas irregulares, vibrando como refletidas na água. Matizes intensos adornando sua identidade. Visto de longe. Impermanente. Os olhos claros irradiam confiança, brilham em azul céu, refletem luz na sala. Até as sombras abertas, de cores acesas. Move-se com agilidade, rastros velozes, tomados de sensações. Inconstante no vestir. Arrojado, polido, vezes um descaso. Tem uma penumbra, quase apagada. É ele.
Belo, assim. De longe. Foi como eu o conheci. O encanto era à distância, a tinta de seus traços rabiscados no papel. As palavras nuas. De longe. Escrevia cartas, como um personagem de si. Definia-se: alguém de compleição magra, porte alto, passos firmes, cheiro de homem, sem perfume. Sabia o que dizer. Por onde andar. Ele sabia do seu cheiro, vangloriava-se, até. E seus dizeres, com a volúpia de luzes fortes. Os envelopes vinham com selo escolhido, endereçados a mim. Impecável em sua luxúria, fazia da atmosfera de suas cartas uma intensa alcova, onde me deitava com suas palavras.
Enfeitava-me para escrever, com os mais belos vertidos e jóias. Sentada na cadeira da escrivaninha, respondia aos seus apelos. Tantos enfeites em vão. Depois, o tinteiro me trairia, despindo-me nas listas da folha, e já nem vergonha havia mais. Ele, de longe, rasgava os envelopes com movimentos descuidados, como se assim fosse tirar meus trajes íntimos, para logo enxergar o que guardava cada nova carta. E sempre, e cada vez mais, o silêncio permeava nossos diálogos, escondendo, em si, palavras não ditas. O corpo aquecia, e a figura turva, desenhada por sua caligrafia, me fazia suar. Não havia espaço para palavras, frases, parágrafos. Nus, registrávamos nosso enlace quando passava o homem do correio, que nem imaginava carregar tantas fantasias. Impressões.
A chegada de um selo diferente trazia mistério, nuanças intensas, cheiros mais fortes. Sua figura era mais nítida, as pinceladas compunham o belo homem, escrito na carta. Tinha uma robustez, e seus braços fortes, descritos em tinta preta, me seguravam de todo. Insinuávamos um ao outro nossa performance, e aquele papel de textura áspera carregava nossas mentiras, em pinceladas curtas, cores vivas. Exclamações, interrogações, expectativas, e o desejo de ver de longe. A figura por inteiro, a claridade dos olhos azuis, o abraço de conforto no final do sexo. De perto, o medo era o de perder-se a nitidez, um pavor de que ele se tornasse em borrões, lado a lado. De que se derretesse o homem de passos firmes, e a realidade fossem manchas compondo seu corpo.
Entre um recém e outro, isso me passava pela idéia. Esquecia, ao ler nova carta, encantadora, voluptuosa, em carne viva. O suor escorria-lhe, também, eu via as manchas na folha. A caligrafia reta que se entortava, quando a excitação chegava ao ápice. Palavras indefinidas, letras mal cuidadas. Assim anunciava seu prazer.
Tornou-se hábito. Desnudava-me em nossos lençóis, já escrevia às pressas pra levar ao correio, chegar nova carta, e a resposta. Ardente, queimando as mãos do carteiro. Corríamos num frenesi de palavras soltas, de uma ausência de frases. Pontuações, revelações desconexas. Folhas vazias, quase. E nós, ali. Cada um em pontos diferentes do mapa, muito distantes. Em poucos meses chegaria. De navio. Que eu esperasse. Cartas e cartas. Ele, nítido e fugaz. Eu, ali. Esperançosa de sua visita. Mas já com saudades dos envelopes, dos selos, de nossos corpos entrelaçados pelo ir e vir do correio.
Ele ansiava pelo bilhete de partida. A cada semana, nenhuma novidade. Caminhava até o ofício, o bilhete não chegara. Sem previsão. Disfarçávamos, balbuciávamos banalidades, mas a conversa corria à nossa fúria, e lá estávamos. Enxarcados. Eu, de certa forma, alegrava-me, a cada negativa informada pelo burocrata que devia entregar o tal bilhete. Mais cartas. E tantas. De longe, era o homem alto, magro, claro, sem perfume, me tomando em seu corpo.
De perto, quem saberia?
Um bilhete que não chegava, cartas de perdição, um desconhecido. Com referências. Eu poderia antecipar seus passos, às quintas-feiras pela manhã, quando ele caminhava lentamente ao posto para buscar notícias de sua vinda. Às quintas-feiras. Praticamente caminhava ao seu lado, tamanha a proximidade de nossa distância. E se eu fingia sofrer pela falta do bilhete, a malícia de nossa correspondência me encorajava a esperar.
Numa das quintas-feiras, o homem do ofício fez um olhar misterioso, abriu a gaveta, puxou o bilhete. Ele, incrédulo, paralizou-se. Sorriu. A caminhada de retorno a casa foi nova, de ar respirado até o fundo. Veria aquelas paisagens pela última vez. Veria a si mesmo pela última vez. Digo, seu personagem. O das cartas. Escreveu-me novamente, anunciando a novidade, feliz. Estranhei, parecia ríspido, objetivo, sem adular-me a todo momento. Eu, caprichosa, entristeci. Comunicou-me, como notícia.
Numa tarde abafada, quando recebi a carta, senti algo no peito. Uma angústia, um aperto, coisa assim. A imagem nítida, à distância, parecia se desmanchar. Sentia as cartas se derreterem, as palavras se dissolverem como tinta fresca, escorrendo pela folha. Borrões, lado a lado.
Sabia de sua volta. Data, hora. O navio deveria partir em tarde ensolarada, de um dia da semana. De novo, paisagem impressionista, cheia de claridade, luz, cores distintas. Belo, suntuoso navio. De longe. Ele, passos rápidos e firmes.
Por alguns dias eu não receberia cartas, notícias, nossa alcova restaria no vazio. Por alguns dias. Esperaria. Esperei. O navio, aquele, não chegou. Nunca nos vimos. Permaneceu na pintura, em pinceladas curtas, paisagem composta por quem vê à distância. Vez, me surpreendi com a tela exposta num parque. Pelo artista que o pegou de relance. Homem alto, magro, cheiro de corpo, pintado a traços. Era o seu passo, sua penumbra, aquela claridade assombrosa com que registrava o prazer. Aquele, das cartas.