PALMAS NO PICADEIRO
Betina Mariante Cardoso
Chamei o paciente à porta, pelo nome. Ele, passos largos desde o banco do corredor à fria sala de consultas. Nos lábios, uma expressão enfadonha. Além, um olhar vago, como de quem avistasse cenas suas, apenas. De seus cinqüenta e poucos anos, calculei. Eu perscrutava, atenta, sua fisionomia sem viço e a pele branca, de uma textura feito cera, em tom pálido. Cabelos cheios, já com alguns fios de tom cinza. Desgrenhados, como um desleixo à sua figura. Bochechas fartamente preenchidas, com a queda natural do tempo. De formas indefinidas, talvez do desgaste pelas intempéries, o semblante lembrava um baú de guardados.
Fechei a porta. Antes que eu o convidasse a sentar, fitei-o, silenciosa, com discreta curiosidade. Instigavam-me seu cenho cerrado e a voz baixa, as poucas palavras na saudação, certo olhar de poucos amigos. Nas feições, as saliências que a memória imprime. A testa riscada a lápis, tão nítidas as rugas. Eu, incapaz de traduzir seu rosto.
Sentia-me pequenina frente à sua soberba. Alto, de compleição robusta, braços de contornos grosseiros. Aperto de mãos, sim. Forte, todo o peso do corpo nos ossos dos dedos. Homem de pouco sorriso, já se via.
Fiz gesto, com a mão espraiada, que se acomodasse. Sentou-se, gravemente. Pachorrento, ocupou toda a cadeira. Com ela, compunha uma unidade, imóvel em seus gestos. Parecia parte do inanimado. Mal abria os lábios para falar, e os olhos permaneciam mirando um horizonte só seu. Tronco e membros em conluio com a inércia da face.
Passei às perguntas, motivo da visita, sinais e sintomas médicos, questionamento formal. Suas falas quebravam o silêncio por segundos, respondendo e calando-se, como escutando, num outro plano, as próprias histórias.
Interroguei, por primeiro, dados de identificação. Circense. Resposta seca, áspera, tom de orgulho. Título que respondia pelo nome, idade, profissão, naturalidade e procedência, estado civil. Circense, repetiu em tom definitivo, ao meu olhar perplexo. Um silêncio me paralisou, e escrevi a informação em sua ficha, num pisar lento da caneta sobre a folha. Não poderia imaginar. Circense?, repeti, em dúvida. Ele completou, firme: cômico. Cômico de circo. Pareceu irritado com minha pergunta, fosse óbvio seu ofício, só pela figura.
Como na chegada, mirei, insistente, seu paradoxo. Não havia, naquelas feições, algum dado que me remetesse à imagem de um cômico de circo. Palhaço, ele afirmou, talvez percebendo minha hesitação. Cavoquei, nos meus registros de criança, a imagem do palhaço. Não era aquela. Tentei imaginá-lo no auge da mocidade, nem assim. Colocava suas formas no papel do domador de leões, quem sabe. Enquanto eu percorria meu interrogatório, o descompasso me instigava. Não me era possível desenhar-lhe as nuanças. Faltava-me algum dado, um pedaço da história fugia-me.
Minha atenção oscilava entre a escuta e as idéias sobrevoantes de criança. Olhos arregalados, tentando ater-me aos cuidados com sua saúde. Perguntas precisas, respostas das quais nem lembro. Sondava, em sua máscara imóvel, minhas lembranças, como querendo acreditar no inusitado que me afrontava. O homem respondia contrariado os itens formais, conforme eu avançava. Remédios, doenças. Palpitação?, indaguei-lhe. Ele continuava ao longe, como imerso em suas histórias. Tive vontade de entrar também, fechar os olhos, ouvir a música que anunciava o início do espetáculo, sentir o som da pipoca estalando entre as filas de espectadores.
Nessas alturas, as questões médicas ficaram, pra mim, em segundo plano. Deitei a caneta ao lado da folha, desliguei-me da hora. Quis ouvir, na voz farta, as peripécias do sujeito. A luz branca da sala me impedia de figurar o chão de terra, as luzes coloridas, a tenda amarela. Tentava, com todos meus sentidos vivos, tocar a cena. Ele, nenhum sorriso, sequer esboço. Seus olhos, no entanto, me convidavam à arquibancada. Eu, sem saber bem por que, passei ao picadeiro. Palhaço sem mímica, mais me assustava.
Feito menina de meus cinco anos, suja de algodão-doce, me confortei no assento de plástico das fileiras. Esperava o início do espetáculo. Sentia-me, ali, parte do RESPEITÁVEL PÚBLICO!. Começou a contar-me da vida itinerante, entre dias ébrios, outros melancólicos. Vezes, largava o público, puro enfado de sorrir tanto. Apresentou-me seu personagem.
Desde sempre, palhaço de circo. Nasceu naquele redondo de terra, quando a mãe deu-lhe existência, perdendo a própria. Gorda, mais ainda pela gravidez, largava-se na vida mundana, com a criança na barriga e tudo. Vestidos largos, soltos. Risada frouxa. Bebidas, farras, paixões tortuosas. Todo jeito de cigana, lia a sorte. Mal inexplicado, cerrou de súbito os olhos. Sem testamento. Sem pai conhecido. O menino foi salvo no parto, criado na vida mambembe. A história da mãe construída em mosaico, contada lá e cá, pedaços faltando.
Virou o mundo, disse. Caretas, tombos, cambalhotas. Saltos do globo da morte, piadas, deboches de gentes conhecidas. Fez de tudo. Mostrou-me marcas de luta travadas com animais ferozes, recordou-se de sua destreza com os malabares, contemplando, ao longe, sua própria imagem.
Cenário montado, luzes poucas, olhos expectantes. Iniciava a noite com suas peripécias, era o que mais gostava. Risos muitos que despertava em crianças e adultos, avós, babás. Histórias que tinha para si. Eu escutava, apenas.
A atmosfera do picadeiro trouxe à consulta a tonalidade de suas reminiscências. Cômico, dizia ele, em tom sério, respeitoso, honrado. Enquanto a voz rouca já tingia a sala de cores vivas, eu mirabolava percursos, personagens outros, largas horas de circo. Rodopiava com ele pelos giros do tempo.
Momento, tudo silenciou. Então, éramos outra vez nós dois, ali, sem qualquer outra iluminação, senão a luz branca, fluorescente, séria, da sala de consultas. O homem fitou-me, severo. Nenhum som, apenas aquele da gravidade de seu olhar. Desviou-se, mirando um ponto na parede, sem nada dizer. De pronto, a voz grave tomou-se de fantasia, esboço de sorriso.
-Naquela noite, decidi surpreender a todos expectadores, colegas, até ao picadeiro. Não contei a ninguém, reservei a mim mesmo o deleite da produção. E iniciei, sem música, pleno silêncio, o espetáculo. Percorri o círculo de terra montado em nosso elefante, de um cinza claro, soberano. Eu, de branco, todo branco. Figurino, maquiagem. Vestia um chapéu sóbrio, da mesma cor, com uma fita preta de cetim em seu detalhe. Podia escutar os murmúrios da platéia, as palmas que iniciavam a tocar, gritos clamando meu nome, o clec das palmas aumentando, até tomar toda a tenda, a quadra, todo o ar. Imponentes, mantínhamos a incógnita, enquanto o som retomava a calmaria. E então veio o silêncio. Quando abri os lábios para apresentar a noite, quem falou foi o elefante, qual ventríloquo, voz estranha, retumbando em tom alto, fazendo-se ouvir. De mim, nenhum som, era como se ele adivinhasse minhas falas, minhas piadas, meus deboches. Roubara-me o espetáculo. O público voltou a bater palmas, e tantas, ao número que dava início ao circo, sem saber que a mim também era surpresa tal inusitado. E a noite transcorreu com seus trapezistas, malabarismos, brincadeiras, engolidores de fogo, mulher barbada, e a perene seqüência da programação, toda apresentada pelo animal.
Eu, em silêncio. O sujeito seguiu, fitando meus olhos, pedindo, com a mirada, que eu acreditasse em seu relato.
-Dali em diante, meus lábios abriam, mas, perplexos, não emitiam voz. A minha voz. Destino infeliz o meu, Doutora. Descobrir tal dom fez-me sentir palhaço de mim, surpreso por minha própria invenção. Voltei a falar, sim, mas vez que outra a maldição me prega uma peça, e a fala não sai de minha boca, mas de algum objeto. Ventríloquo? Em toda essa vida nunca tive este papel no circo, e apresentar o espetáculo era minha intensa paixão, que nem consigo mais desempenhar com apreço. Volta e meia, em casa, na tenda, em qualquer parte, ouço meus pensamentos saírem por outro veículo, que não meus lábios abertos. Poderia, agora, silenciar, e esta cadeira preta, solene, falaria por mim, dizendo toda sorte de desvairios, tomando-se de vida própria. Já não sei se é maldição, dom ou loucura.
Betina Mariante Cardoso
Chamei o paciente à porta, pelo nome. Ele, passos largos desde o banco do corredor à fria sala de consultas. Nos lábios, uma expressão enfadonha. Além, um olhar vago, como de quem avistasse cenas suas, apenas. De seus cinqüenta e poucos anos, calculei. Eu perscrutava, atenta, sua fisionomia sem viço e a pele branca, de uma textura feito cera, em tom pálido. Cabelos cheios, já com alguns fios de tom cinza. Desgrenhados, como um desleixo à sua figura. Bochechas fartamente preenchidas, com a queda natural do tempo. De formas indefinidas, talvez do desgaste pelas intempéries, o semblante lembrava um baú de guardados.
Fechei a porta. Antes que eu o convidasse a sentar, fitei-o, silenciosa, com discreta curiosidade. Instigavam-me seu cenho cerrado e a voz baixa, as poucas palavras na saudação, certo olhar de poucos amigos. Nas feições, as saliências que a memória imprime. A testa riscada a lápis, tão nítidas as rugas. Eu, incapaz de traduzir seu rosto.
Sentia-me pequenina frente à sua soberba. Alto, de compleição robusta, braços de contornos grosseiros. Aperto de mãos, sim. Forte, todo o peso do corpo nos ossos dos dedos. Homem de pouco sorriso, já se via.
Fiz gesto, com a mão espraiada, que se acomodasse. Sentou-se, gravemente. Pachorrento, ocupou toda a cadeira. Com ela, compunha uma unidade, imóvel em seus gestos. Parecia parte do inanimado. Mal abria os lábios para falar, e os olhos permaneciam mirando um horizonte só seu. Tronco e membros em conluio com a inércia da face.
Passei às perguntas, motivo da visita, sinais e sintomas médicos, questionamento formal. Suas falas quebravam o silêncio por segundos, respondendo e calando-se, como escutando, num outro plano, as próprias histórias.
Interroguei, por primeiro, dados de identificação. Circense. Resposta seca, áspera, tom de orgulho. Título que respondia pelo nome, idade, profissão, naturalidade e procedência, estado civil. Circense, repetiu em tom definitivo, ao meu olhar perplexo. Um silêncio me paralisou, e escrevi a informação em sua ficha, num pisar lento da caneta sobre a folha. Não poderia imaginar. Circense?, repeti, em dúvida. Ele completou, firme: cômico. Cômico de circo. Pareceu irritado com minha pergunta, fosse óbvio seu ofício, só pela figura.
Como na chegada, mirei, insistente, seu paradoxo. Não havia, naquelas feições, algum dado que me remetesse à imagem de um cômico de circo. Palhaço, ele afirmou, talvez percebendo minha hesitação. Cavoquei, nos meus registros de criança, a imagem do palhaço. Não era aquela. Tentei imaginá-lo no auge da mocidade, nem assim. Colocava suas formas no papel do domador de leões, quem sabe. Enquanto eu percorria meu interrogatório, o descompasso me instigava. Não me era possível desenhar-lhe as nuanças. Faltava-me algum dado, um pedaço da história fugia-me.
Minha atenção oscilava entre a escuta e as idéias sobrevoantes de criança. Olhos arregalados, tentando ater-me aos cuidados com sua saúde. Perguntas precisas, respostas das quais nem lembro. Sondava, em sua máscara imóvel, minhas lembranças, como querendo acreditar no inusitado que me afrontava. O homem respondia contrariado os itens formais, conforme eu avançava. Remédios, doenças. Palpitação?, indaguei-lhe. Ele continuava ao longe, como imerso em suas histórias. Tive vontade de entrar também, fechar os olhos, ouvir a música que anunciava o início do espetáculo, sentir o som da pipoca estalando entre as filas de espectadores.
Nessas alturas, as questões médicas ficaram, pra mim, em segundo plano. Deitei a caneta ao lado da folha, desliguei-me da hora. Quis ouvir, na voz farta, as peripécias do sujeito. A luz branca da sala me impedia de figurar o chão de terra, as luzes coloridas, a tenda amarela. Tentava, com todos meus sentidos vivos, tocar a cena. Ele, nenhum sorriso, sequer esboço. Seus olhos, no entanto, me convidavam à arquibancada. Eu, sem saber bem por que, passei ao picadeiro. Palhaço sem mímica, mais me assustava.
Feito menina de meus cinco anos, suja de algodão-doce, me confortei no assento de plástico das fileiras. Esperava o início do espetáculo. Sentia-me, ali, parte do RESPEITÁVEL PÚBLICO!. Começou a contar-me da vida itinerante, entre dias ébrios, outros melancólicos. Vezes, largava o público, puro enfado de sorrir tanto. Apresentou-me seu personagem.
Desde sempre, palhaço de circo. Nasceu naquele redondo de terra, quando a mãe deu-lhe existência, perdendo a própria. Gorda, mais ainda pela gravidez, largava-se na vida mundana, com a criança na barriga e tudo. Vestidos largos, soltos. Risada frouxa. Bebidas, farras, paixões tortuosas. Todo jeito de cigana, lia a sorte. Mal inexplicado, cerrou de súbito os olhos. Sem testamento. Sem pai conhecido. O menino foi salvo no parto, criado na vida mambembe. A história da mãe construída em mosaico, contada lá e cá, pedaços faltando.
Virou o mundo, disse. Caretas, tombos, cambalhotas. Saltos do globo da morte, piadas, deboches de gentes conhecidas. Fez de tudo. Mostrou-me marcas de luta travadas com animais ferozes, recordou-se de sua destreza com os malabares, contemplando, ao longe, sua própria imagem.
Cenário montado, luzes poucas, olhos expectantes. Iniciava a noite com suas peripécias, era o que mais gostava. Risos muitos que despertava em crianças e adultos, avós, babás. Histórias que tinha para si. Eu escutava, apenas.
A atmosfera do picadeiro trouxe à consulta a tonalidade de suas reminiscências. Cômico, dizia ele, em tom sério, respeitoso, honrado. Enquanto a voz rouca já tingia a sala de cores vivas, eu mirabolava percursos, personagens outros, largas horas de circo. Rodopiava com ele pelos giros do tempo.
Momento, tudo silenciou. Então, éramos outra vez nós dois, ali, sem qualquer outra iluminação, senão a luz branca, fluorescente, séria, da sala de consultas. O homem fitou-me, severo. Nenhum som, apenas aquele da gravidade de seu olhar. Desviou-se, mirando um ponto na parede, sem nada dizer. De pronto, a voz grave tomou-se de fantasia, esboço de sorriso.
-Naquela noite, decidi surpreender a todos expectadores, colegas, até ao picadeiro. Não contei a ninguém, reservei a mim mesmo o deleite da produção. E iniciei, sem música, pleno silêncio, o espetáculo. Percorri o círculo de terra montado em nosso elefante, de um cinza claro, soberano. Eu, de branco, todo branco. Figurino, maquiagem. Vestia um chapéu sóbrio, da mesma cor, com uma fita preta de cetim em seu detalhe. Podia escutar os murmúrios da platéia, as palmas que iniciavam a tocar, gritos clamando meu nome, o clec das palmas aumentando, até tomar toda a tenda, a quadra, todo o ar. Imponentes, mantínhamos a incógnita, enquanto o som retomava a calmaria. E então veio o silêncio. Quando abri os lábios para apresentar a noite, quem falou foi o elefante, qual ventríloquo, voz estranha, retumbando em tom alto, fazendo-se ouvir. De mim, nenhum som, era como se ele adivinhasse minhas falas, minhas piadas, meus deboches. Roubara-me o espetáculo. O público voltou a bater palmas, e tantas, ao número que dava início ao circo, sem saber que a mim também era surpresa tal inusitado. E a noite transcorreu com seus trapezistas, malabarismos, brincadeiras, engolidores de fogo, mulher barbada, e a perene seqüência da programação, toda apresentada pelo animal.
Eu, em silêncio. O sujeito seguiu, fitando meus olhos, pedindo, com a mirada, que eu acreditasse em seu relato.
-Dali em diante, meus lábios abriam, mas, perplexos, não emitiam voz. A minha voz. Destino infeliz o meu, Doutora. Descobrir tal dom fez-me sentir palhaço de mim, surpreso por minha própria invenção. Voltei a falar, sim, mas vez que outra a maldição me prega uma peça, e a fala não sai de minha boca, mas de algum objeto. Ventríloquo? Em toda essa vida nunca tive este papel no circo, e apresentar o espetáculo era minha intensa paixão, que nem consigo mais desempenhar com apreço. Volta e meia, em casa, na tenda, em qualquer parte, ouço meus pensamentos saírem por outro veículo, que não meus lábios abertos. Poderia, agora, silenciar, e esta cadeira preta, solene, falaria por mim, dizendo toda sorte de desvairios, tomando-se de vida própria. Já não sei se é maldição, dom ou loucura.
O homem deixou correr algum choro em seus olhos, pálidos de realidade. Entristeci. A avaliação médica tomara-me do passeio lúdico, enfim cogitei a hipótese diagnóstica. Loucura, sugerida por ele em seu devaneio. Seguiu em seu delírio, narrativas ricas em fantasia, solilóquios, lembranças que desejaria ter. O rosto, no entanto, bem sabia que as histórias eram apenas suas, sem palco. Sem palmas.
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