De repente, a mesma rua. Me vi, ali. Todas as idades. Jerônimo Coelho. Entre a Borges de Medeiros e a Praça da Matriz. Nasci ali. E Era assim que anunciava o endereço. Exatamente como me sentia. Entre a Borges e a Praça da Matriz. Ali, meu mundo infantil. A banca onde comprava as figurinhas dos álbuns, a esquina onde esperava o ônibus da escola. Mais. A quadra inteira, meu pátio. Entre a borges e a Praça da Matriz. O percurso até a praça da Matriz, por onde passava. Idas e vindas. Pensava. Já pensava. Um passo e outro. Pensando. E quantas vezes trilhei a calçada. Pra lá e pra cá. Hoje, lajes mais novas do que meus passos por aquela rua. Mais do que a rua. O trecho. Onde tudo vivia. O Edifício Monroe, ali, ainda. Soberbo, agora com vasos de flores na entrada. Mas nada engana. As escadinhas discretas até o elevador, que tanto me transportaram pelas histórias. Idas e vindas, ali também. Todos os dias, do elevador à rua, um momento crucial: "Bom Dia, seu Dino", descendo as escadinhas. Todas as idades. É personagem destes degraus, seu Dino. De cada degrau do tempo em que o Bom Dia do seu Dino me via crescer. E me via a cada dia. A cada manhã. A imponência da entrada. Algo mudada, mas a mesma. Posso resgatar imagens da minha mirada por aquele túnel de degraus, a pouca luz. Num vai-vêm de memórias, fotografias de tantos tempos. E minhas, subindo e descendo. Subindo e descendo no tempo. E o seu Dino, repórter dos meus gerúndios. Com alguma confusão, me fixo no túnel que leva ao elevador. Muita vontade de subir no elevador, até o décimo terceiro andar, e bater a campainha. E atender a porta, como se os tempos se cruzassem, em paralelo. E entrar naquele labirinto. Terraço, meu navio de mundos distantes. Minto. Não é bem vontade. Como uma curiosidade voyeur, de reenxergar janelas inexplicadas. Percorrer a casa. Descer até o primeiro andar, e visitar meus avós. Comer bombons Garoto com Coca-cola, que a Vó Léia sempre mantinha em seu mundo de avó. Por vezes, a vó era um pouco poltrona, também. Ali, ouvindo o tempo passar, as histórias escorridas. Ela, balançando na cadeira de rodas, contando feitos. Vez que outra. Ouvindo, em um silêncio bom. O escritório do vô, com as estantes altas, cheias de livros, a máquina de escrever, verde, sobre a escrivaninha. Sempre com alguma folha esperando acontecer. Personagens. Ainda sinto aquele cheiro do escritório, posso percorrer toda a casa e me lembrar da vó me ensinando o "noves fora" no sofá da sala. Ou o vô, casmurro, digitando seus anseios. Na mesa da cozinha, comendo salaminho com parmesão, pão de meio quilo e manteiga Aviação. E café, forte, quente e doce. Havia um silêncio confortável, casa de avós. E rumores. Entonações muitas. O corredor. O elevador da garagem, de madeira, escuro, com duas portas, uma de cada lado. Assombroso.Outro personagem da história, o elevador. Tinha seu cheiro, também.Tinha muito de tudo. E percorria todos os andares. Todas as mudanças, histórias, maledicências. O elevador da garagem era jocoso, não soberbo como a entrada do Monroe. Sabia de tudo, escutava calado. Em suas paredes, ria. Com alguma complacência. Deixava os moradores em seus andares, guardando as palavras, ainda nem ditas. Pensadas. O Monroe teve contos, isso teve. E ainda nem mencionei vizinhos, o viaduto da Borges de Medeiros, cujas escadas tinham o tamanho da minha imaginação. Me viram crescer, como o seu Dino. Passei por baixo do viaduto, tantas vezes, e em tantos momentos. E pelas escadas, que com o tempo assumiram seu tamanho e importância adequados. A minha escadaria, aquela que imaginava, diminuía com os anos passando. Os vizinhos, as calçadas, a sensação do trecho da Jerônimo Coelho entre a Borges e a Praça da Matriz. E hoje isso se esvai, concretamente. Vejo um novo casal, que vai ocupar a casa dos meus avós. A dispensa, onde a vó guardava suas infindáveis latas de azeite de oliva. O escritório, onde os livros do vô me fascinavam, a máquina de escrever, a atmosfera de palavras possíveis. tudo se esvai. Numa mistura de vento e baú. Guardo em mim todas as lembranças, cada linha. E deixo ir. Pelos passos naquela calçada, me vejo a de agora, ora com passos da menina que recém dera bom dia ao seu Dino.
Esse marrom? A cor do elevador da garagem. Faltam as ranhuras do tempo.
Betina Mariante Cardoso