Friday, January 26, 2007

SARAU CHICO BUARQUE-26/01/07


João e Maria
Sivuca - Chico Buarque/1977

Agora eu era o heróiE o meu cavalo só falava inglêsA noiva do cowboyEra vocêAlém das outras trêsEu enfrentava os batalhõesOs alemães e seus canhõesGuardava o meu bodoqueE ensaiava um rockPara as matinês
Agora eu era o reiEra o bedel e era também juizE pela minha leiA gente era obrigada a ser felizE você era a princesaQue eu fiz coroarE era tão linda de se admirarQue andava nua pelo meu país
Não, não fuja nãoFinja que agora eu era o seu brinquedoEu era o seu piãoO seu bicho preferidoSim, me dê a mãoA gente agora já não tinha medoNo tempo da maldadeAcho que a gente nem tinha nascido
Agora era fatalQue o faz-de-conta terminasse assimPra lá deste quintalEra uma noite que não tem mais fimPois você sumiu no mundoSem me avisarE agora eu era um louco a perguntarO que é que a vida vai fazer de mim
SARAU CHICO BUARQUE 26 / 01/ 07


O que será (À flor da pele) Chico Buarque/1976

O que será que me dá Que me bole por dentro, será que me dáQue brota à flor da pele, será que me dáE que me sobe às faces e me faz corarE que me salta aos olhos a me atraiçoarE que me aperta o peito e me faz confessarO que não tem mais jeito de dissimularE que nem é direito ninguém recusarE que me faz mendigo, me faz suplicarO que não tem medida, nem nunca teráO que não tem remédio, nem nunca teráO que não tem receitaO que será que seráQue dá dentro da gente e que não deviaQue desacata a gente, que é reveliaQue é feito uma aguardente que não saciaQue é feito estar doente de uma foliaQue nem dez mandamentos vão conciliarNem todos os ungüentos vão aliviarNem todos os quebrantos, toda alquimiaQue nem todos os santos, será que seráO que não tem descanso, nem nunca teráO que não tem cansaço, nem nunca teráO que não tem limiteO que será que me dáQue me queima por dentro, será que me dáQue me perturba o sono, será que me dáQue todos os tremores me vêm agitarQue todos os ardores me vêm atiçarQue todos os suores me vêm encharcarQue todos os meus nervos estão a rogarQue todos os meus órgãos estão a clamarE uma aflição medonha me faz implorarO que não tem vergonha, nem nunca teráO que não tem governo, nem nunca teráO que não tem juízo

Thursday, January 25, 2007

PULSO

Sob o vidro do relógio.
Malabarista
no vetor pulsátil do tique-taque.
Tenazes,
Mãos, braços e pernas.
Um passo,
e outro.
Vistas à frente,
Fitando o equilíbrio,
o minuto.
Distração.
Olho abaixo,
largo as pupilas no vácuo.
Eixo ou descompasso?

Traços de tempo,
no espaço circular.

Em saltos, cruzo os ponteiros.

Intersecção.


Volto a mirar adiante.
Alinho o corpo.
Queixo no ângulo do céu.
Calcanhares e pontasem diagonal.
Busto amplo.
Ombros,linha do horizonte.
Longe,mãos espalmadas, tocando o ar.
Vértice.
Outro giro.
Lenta vertigem.
Arrisco piruetas.
Desliza a mão,escorrego.
Bailo uma das pernasno ponteiro dos segundos.
Torno ao minuto.
Corrijo a postura,
acerto o ritmo.
Movimento.
À vontade.
Balanço.
Danço.

Solto uma das mãos,ao ar livre.
Eu, vento.
Por dentro do vidro.
Minutando.



Repouso.
Pulo,
sento numa das horas,
cruzo as pernas.


Observo o entorno,
Ponteiros indo e vindo.
Contemplo o tempo.

Betina Mariante Cardoso

Monday, January 08, 2007

Claridade
Luz inquieta me acorda do sonhar,
Lusco-fusco entre sono e vigília.
Atravesso porões, subo escadas, abro portas.
Corredores longínquos,
escuros, atordoados.
E novas portas.
Silêncio, tantos rumores.
Desperta ou em sonho,
Lembro de algo.
Esqueço depois.
Gentes que nunca vi, lugar estranho.
Máscaras de conhecidos, frases sem nexo.
Caminho neste labirinto, ajeitando o travesseiro.
Claridade
Parece vir dum cômodo.
Cenário tortuoso.
Luzinha trêmula
veste de antigo o meu sonho,
reflete-se na cristaleira,
pinga cores na sala vazia.
Na inquietude da luz.
Zigue-zague
da loucura à sanidade.
Desperta e sonhando.
Ruidoso silêncio,
quietude dos rumores.
Escuro do sono,
na iluminação indireta da vigília.
Desassossego que me acorda do sonhar.


Betina Mariante Cardoso

Sunday, January 07, 2007

Croissants, Ainda Quentes

Betina Mariante Cardoso

Edimburgo, Escócia. Lynedoch Place. Letras em negro na placa sóbria. Uma lomba tênue. Em fileira, dez casas, todas iguais. Pedras de um cinza escuro, chumbo. A cor da cidade, se vê. Lado a lado, jardins particulares, portões de ferro, números pouco à vista, acima das portas brancas. Elegância lúgubre. À volta, um tom de sol, céu fosco. Um ar escondido.
Procuro o Bed & Breakfast de Susie e Andrew Hamilton. Aquela espécie de hospedagem domiciliar em que os donos da casa recebem toda sorte de visitantes para dormirem em seus cômodos. E, manhã cedo, idiomas e ofícios encontram-se na mesa da sala de refeições, em conversas sobre o tempo ou a geléia da confeitaria vizinha.
O motorista do táxi deixa-me ali, íngreme, com a bagagem.
-Deve ser esta a casa, ou a próxima. Tem o número?
Faço que sim, com a cabeça. De palavras, muda.
-É uma destas. Terá que procurar. Boa tarde.
Respiro. Aperto os olhos, na tentativa de fixar o número. Confiro com o registro a lápis, na folha de bloco. Lynedoch Place, 16. Aqui.
O portão já envelhecido, preso com um arame frouxo. Abro, trazendo meus pertences para o jardim. Arrisco uma escadinha, externa à casa, logo abaixo. Observo uma peça. Antiga, parece. Porta de madeira, única. Na maçaneta, o azinhavre. E na fechadura. Tento entrar, trancada a porta. A janela, graciosa, no ângulo. Cortinas claras, voal. Luz pouca. Insinuadas, sombras nuas. Mobília, quem sabe. Ou vestígios ainda quentes, de corpos.
Sem pistas, subo à porta principal. Presa por durex, uma folha branca dobrada, com meu nome.
-Cara hóspede, não pude esperá-la, lamento. Por uma urgência, fui ao centro da cidade. As chaves estão sob o capacho. A verde serve à entrada (porta branca), chave geral. A cinza abre a segunda porta, de vidro. Abrindo-a, deverá descer ao andar inferior, onde há vários cômodos. Seu quarto será o último à direita. Retorno às 17hs, espero encontrá-la. Temos leite e frutas na geladeira, fique à vontade. Atenciosamente, Susie Hamilton.
Levanto o capacho, estendido rente à entrada. Sim, as chaves. Duas, a verde e a cinza. Verde, porta de entrada, branca, solene. Cinza, a de vidro, convidando ao interior da casa. Se bem que percebo uma terceira, menor, presa ao meu chaveiro. Não sei de onde é. Sem importância, acredito. Entro. Quartos sem fechadura, minha maçaneta presa por preguinhos frouxos. O único cômodo trancado é a peça de baixo, acesso externo, pelo jardim.
Móveis de estilo, aconchego. Cores quentes, perfume de casa. Um carpete de pisar silencioso. Sons abafadiços. E ninguém. Saio à rua. Segunda-feira, 16:15, pelos relógios do comércio local. Tudo na cidade parece silente. Trajes sérios pelas calçadas, poucas vozes. Retorno ao Bed & Breakfast.
Uma camareira, avental rosa pálido, me recebe. Perguntas, listas, orientações, ressalvas. O horário do café da manhã, se bacon e ovos. Ausente a dona da casa, e já passa das cinco da tarde. Ao fundo, atmosfera intocada. A perfeição do estático, nem o pó em movimento. Me aborreço. Nada acontece. Pelos andares, adornos simpáticos e convidativos, em pouca vida.
Todos os quartos ocupados, hóspedes em passeio ou a negócios, explica a moça de rosa. 18:15, no belo relógio da sala de refeições. Peça de antiquário, escura, pêndulo cá e lá. O aviso do tempo, a cada hora. Ela me alerta, impassível:
-Deve sair para jantar. A cidade se apaga às 20hs.
À rua, caminho displicente. Sem mapa, percorro vias e praças. Alheia a tudo , passos em monólogo. Carrego as chaves comigo, e o endereço. Lynedoch Place, 16. Na bifurcação, à esquerda, a sexta casa. Estou na avenida principal, prédios altos, renovados. Na esquina, o Castelo. Contraste fulminante. Sigo, na estranheza do cinza. Dispersa, aquela névoa plúmbea.
-Sopa de aspargos e coca cola. Cinco libras.
Entrego as moedas à moça do caixa. O som do metal no balcão de fórmica me desperta. Ela sorri, compadecida de meu olhar entediado.
Falta de rumores, vento morno. Um crepúsculo laranja claro, paralítico. Sinto uma chuva rala, solitária. Poucos caminhantes. 20hs, imagino. Reencontro as chaves, dormindo na bolsa. Repito as etapas de abertura das portas. Abro a primeira entrada. Hora de dormir.
Sono leve, e o desconforto de uma cama estranha. Na fronha, aroma adocicado, produto de limpeza. Acordo, com a lembrança das frutas e do leite, na cozinha. Do bilhete na porta. Subo.
Sala de refeições, porta entreaberta. Conheci na chegada, à tarde. Grande, imponente, móveis escuros. A mesa, longa. O espaldar alto das cadeiras, as janelas em arco. E rumores, agora. Noite, uma hora da manhã. A conversa não respeita as paredes. Falam num escocês típico. Uma discussão em andamento, ouço apenas parte. Não consigo espiar.
Diálogo e pausas intercalam-se. Um homem esbraveja, em tom solene. Cada frase, um veredicto. Voz áspera, sotaque definido. Alguma presunção. Inquieto.
- Eram duas da tarde. Dormias. Lembro de ter visto as chaves junto às tuas roupas, caídas ao lado da cama. Bati a porta por fora, sem chavear.
Uma voz de mulher balbucia, trêmula.
-Sim. Acordei a tempo vestir-me. Tranquei a peça. Logo subi pela escadinha. Larguei a chave em algum ponto da casa, só pode ser.
Contemplam-se, imagino.
Ele ri, irônico. Escuto.
Ela, frágil. Titubeia. Pelo silêncio, construo a cena. Deve estar mirando algum ponto ao longe, esforço de lembrança.
-Fiquei certa de tê-las trazido comigo, no bolso do avental. Não sei onde ficaram.
Ele murmura algo, tom ríspido, burocrático. Olhar pungente, calculo. Então, de súbito, amacia a voz, denúncia do encontro das peles. Distraídos, encostam-se no piano, aberto. Fás e dós compõem sinfonia tórrida.
A porta, encostada, permite que eu apenas escute.
Fecham o piano, calados. Som seco, do tampo de madeira. Arrependem-se da aproximação ruidosa, àquela hora. Hóspedes dormindo.
Deixo para trás o assunto. Um copo de leite frio me acompanha. Abro a porta do meu quarto. Tinha esquecido o abajur aceso, na escrivaninha. Penso na cena. Ele, sotaque rouco. Ela, voz baixa, doclidade ambígua.
Dia seguinte, reconheço a voz do homem no café da manhã. O mesmo que, tarde da noite, clamava com insensatez. Serve-se de torradas e geléia, menciona o friozinho atípico neste início de verão. Dias sem sol, vento forte. Cedo, seis e meia. Comentários esparsos, como fazendo sala para mim. Poucos acordados na casa. Me indaga banalidades, entre os goles de café escuro. Ele, um. Eu, outro. Apenas nós dois, em cantos opostos da mesa. Sem assunto, ecoa o som surdo da faca passando manteiga no pão tostado.
Uma voz feminina, doce e maliciosa, arranha o silêncio, anunciando os croissants, ainda quentes. Num Bom-Dia distraído, as polpas dos dedos tocam o ombro do hóspede, amassam-lhe o colarinho, com alguma intimidade. De súbito, ela me perscruta, num sorriso cerrado, sem jeito. Não me sabia ali.
O senhor quieto, soberbo. Disfarça. Comenta a sempre adequada temperatura do café. Ela, uma senhora, seus cinqüenta anos. Desenho de cicerone cuidadosa. Rechonchuda, maquiagem demais para aquela hora da manhã. Apresenta-se a mim, com leve aperto de mãos. Susie Hamilton. A dona da casa. A família mora na cabana de trás, se eu precisar.
Sustenho o impacto. Eram as vozes da sala de refeições, noite passada. Susie, proprietária do Bed & Breakfast. Ele, um hóspede, cativo freguês, parece. Cenário tortuoso. O piano, o relógio, a cristaleira antiga, e muitas fotos de família. Ela e o esposo, ainda novos. Os filhos. Retratos do casamento. Fotos da Festa de Natal, há um ano.
Outros hóspedes ocupam a mesa, amenas saudações. Sons de louça, mastigares polidos. Chega a esposa, suponho. Um cheiro de talco e laquê, num coque recém-feito. Beija-lhe o rosto enquanto, complacente, passa-lhe a mão pelos cabelos brancos. Curva-se, expondo os seios mal cobertos, leve blusa de Organdi azul. Debruça-se por sobre o homem. Anúncio de propriedade. Ele, sisudo, destoa da imprudência da noite passada. Um Bom-Dia curto, interrompido pelo sorver do café. Ela às lojas, ele aos negócios, comenta a senhora, com fala estridente. Senta-se à mesa, a seu lado.
Saio. Com certa picardia, deixo um tom de segredo na chapeleira da entrada. Enfim, algum acontecimento.
A rotina da cidade gira. Durante o dia, passeios. Na casa, o tempo imóvel, à espera das chaves. Impossível o encontro furtivo. Perdeu-se o conjunto que abre a peça de sempre. A casa, que ontem parecia inerte, toma-se de ruído abafado.
Percebo ânsia na dona da casa, quando retorno no final da tarde. Indiscreta, encosto o ouvido na porta.
Na cozinha, ela arfa ao telefone, aspirando a própria voz.
-Quando saí da peça, pela tarde, peguei as chaves no chão, ao lado das roupas. Deixei-as no bolso do avental. Em seguida, tomei nas mãos outro chaveiro, para deixar à nova hóspede. Joguei no bolso, junto com caneta e papel, para o bilhete. Pus sob o capacho, por engano, nosso conjunto, o único que tem três chaves. E como pedir a ela, que hoje presenciou nossa aproximação, no café? Acho melhor termos cautela.
Apreensão. Susie ressente-se do descuido. Imagino, pelo tom de voz.
Com o que agora sei, toco no meu chaveiro, sem olhar. Sinto, então, a terceira chave. Aquela, menor. Fico surpresa. Por um equívoco, carrego, no compartimento interno da bolsa, a ocupação velada da peça de baixo. Esperam pelas chaves, que, sabem, estão comigo. Pedí-las, no entanto, pode parecer suspeito.
Lembro de como cheguei, ontem. O jardim. A escadinha externa. As cortinas claras, a mobília pouca, a luz apagada. O azinhavre, na maçaneta e na fechadura. Quem diria.
Alguns dias de silenciosa inquisição, entre saborosos croissants e goles de café passado. Entreolham-se, a cada manhã desejosa. Assisto à sombra dos quereres, circulando ali. As chaves, agora, minhas.
Uma semana. Largo o chaveiro na banqueta. É madrugada, o táxi me conduz ao Aeroporto. Com brejeira satisfação, deixo um bilhete, agradecendo a hospedagem. Voltarão a abrir a porta da peça de baixo, empoeirada. Mas só quando o dia acordar.

Tuesday, January 02, 2007

Acho que o tempo mudou. Câmbios no céu, tom de sol, ritmo. Mais que um novo ano, a cíclica passagem dos dias. Durmo, e acordo. Ainda bem: um novo azul, a cada horizonte. Aliás, que janeiro é mês das aulas de Horizontalogia, hoje tive a primeira. Meio da tarde, nada de especial. Mas a sensação de olhar pra frente, alcançar, com os olhos, a lonjura do que começa.
Feliz 2007!
Betina Mariante Cardoso
Penumbra

Homem alto. Impressionista. Feito de traços, pinceladas distintas, curtas. De longe, imagem composta. Belo, de claridade volátil. Turvo, quando visto de perto, em toques de cor pura. Figura sem nitidez. Aproxima-se, e o que se vê são borrões, lado a lado. Semblante em desalinho. Parece feito a olho, num relance. Como alguém que passou por ali, em passos rápidos. Num breve vislumbre, como uma notícia de seu caminhar, é pintado pelo artista de rua. Transitório, seu estado natural. Pontos vivamente coloridos, mosaico de tintas irregulares, vibrando como refletidas na água. Matizes intensos adornando sua identidade. Visto de longe. Impermanente. Os olhos claros irradiam confiança, brilham em azul céu, refletem luz na sala. Até as sombras abertas, de cores acesas. Move-se com agilidade, rastros velozes, tomados de sensações. Inconstante no vestir. Arrojado, polido, vezes um descaso. Tem uma penumbra, quase apagada. É ele.
Belo, assim. De longe. Foi como eu o conheci. O encanto era à distância, a tinta de seus traços rabiscados no papel. As palavras nuas. De longe. Escrevia cartas, como um personagem de si. Definia-se: alguém de compleição magra, porte alto, passos firmes, cheiro de homem, sem perfume. Sabia o que dizer. Por onde andar. Ele sabia do seu cheiro, vangloriava-se, até. E seus dizeres, com a volúpia de luzes fortes. Os envelopes vinham com selo escolhido, endereçados a mim. Impecável em sua luxúria, fazia da atmosfera de suas cartas uma intensa alcova, onde me deitava com suas palavras.
Enfeitava-me para escrever, com os mais belos vertidos e jóias. Sentada na cadeira da escrivaninha, respondia aos seus apelos. Tantos enfeites em vão. Depois, o tinteiro me trairia, despindo-me nas listas da folha, e já nem vergonha havia mais. Ele, de longe, rasgava os envelopes com movimentos descuidados, como se assim fosse tirar meus trajes íntimos, para logo enxergar o que guardava cada nova carta. E sempre, e cada vez mais, o silêncio permeava nossos diálogos, escondendo, em si, palavras não ditas. O corpo aquecia, e a figura turva, desenhada por sua caligrafia, me fazia suar. Não havia espaço para palavras, frases, parágrafos. Nus, registrávamos nosso enlace quando passava o homem do correio, que nem imaginava carregar tantas fantasias. Impressões.
A chegada de um selo diferente trazia mistério, nuanças intensas, cheiros mais fortes. Sua figura era mais nítida, as pinceladas compunham o belo homem, escrito na carta. Tinha uma robustez, e seus braços fortes, descritos em tinta preta, me seguravam de todo. Insinuávamos um ao outro nossa performance, e aquele papel de textura áspera carregava nossas mentiras, em pinceladas curtas, cores vivas. Exclamações, interrogações, expectativas, e o desejo de ver de longe. A figura por inteiro, a claridade dos olhos azuis, o abraço de conforto no final do sexo. De perto, o medo era o de perder-se a nitidez, um pavor de que ele se tornasse em borrões, lado a lado. De que se derretesse o homem de passos firmes, e a realidade fossem manchas compondo seu corpo.
Entre um recém e outro, isso me passava pela idéia. Esquecia, ao ler nova carta, encantadora, voluptuosa, em carne viva. O suor escorria-lhe, também, eu via as manchas na folha. A caligrafia reta que se entortava, quando a excitação chegava ao ápice. Palavras indefinidas, letras mal cuidadas. Assim anunciava seu prazer.
Tornou-se hábito. Desnudava-me em nossos lençóis, já escrevia às pressas pra levar ao correio, chegar nova carta, e a resposta. Ardente, queimando as mãos do carteiro. Corríamos num frenesi de palavras soltas, de uma ausência de frases. Pontuações, revelações desconexas. Folhas vazias, quase. E nós, ali. Cada um em pontos diferentes do mapa, muito distantes. Em poucos meses chegaria. De navio. Que eu esperasse. Cartas e cartas. Ele, nítido e fugaz. Eu, ali. Esperançosa de sua visita. Mas já com saudades dos envelopes, dos selos, de nossos corpos entrelaçados pelo ir e vir do correio.
Ele ansiava pelo bilhete de partida. A cada semana, nenhuma novidade. Caminhava até o ofício, o bilhete não chegara. Sem previsão. Disfarçávamos, balbuciávamos banalidades, mas a conversa corria à nossa fúria, e lá estávamos. Enxarcados. Eu, de certa forma, alegrava-me, a cada negativa informada pelo burocrata que devia entregar o tal bilhete. Mais cartas. E tantas. De longe, era o homem alto, magro, claro, sem perfume, me tomando em seu corpo.
De perto, quem saberia?
Um bilhete que não chegava, cartas de perdição, um desconhecido. Com referências. Eu poderia antecipar seus passos, às quintas-feiras pela manhã, quando ele caminhava lentamente ao posto para buscar notícias de sua vinda. Às quintas-feiras. Praticamente caminhava ao seu lado, tamanha a proximidade de nossa distância. E se eu fingia sofrer pela falta do bilhete, a malícia de nossa correspondência me encorajava a esperar.
Numa das quintas-feiras, o homem do ofício fez um olhar misterioso, abriu a gaveta, puxou o bilhete. Ele, incrédulo, paralizou-se. Sorriu. A caminhada de retorno a casa foi nova, de ar respirado até o fundo. Veria aquelas paisagens pela última vez. Veria a si mesmo pela última vez. Digo, seu personagem. O das cartas. Escreveu-me novamente, anunciando a novidade, feliz. Estranhei, parecia ríspido, objetivo, sem adular-me a todo momento. Eu, caprichosa, entristeci. Comunicou-me, como notícia.
Numa tarde abafada, quando recebi a carta, senti algo no peito. Uma angústia, um aperto, coisa assim. A imagem nítida, à distância, parecia se desmanchar. Sentia as cartas se derreterem, as palavras se dissolverem como tinta fresca, escorrendo pela folha. Borrões, lado a lado.
Sabia de sua volta. Data, hora. O navio deveria partir em tarde ensolarada, de um dia da semana. De novo, paisagem impressionista, cheia de claridade, luz, cores distintas. Belo, suntuoso navio. De longe. Ele, passos rápidos e firmes.
Por alguns dias eu não receberia cartas, notícias, nossa alcova restaria no vazio. Por alguns dias. Esperaria. Esperei. O navio, aquele, não chegou. Nunca nos vimos. Permaneceu na pintura, em pinceladas curtas, paisagem composta por quem vê à distância. Vez, me surpreendi com a tela exposta num parque. Pelo artista que o pegou de relance. Homem alto, magro, cheiro de corpo, pintado a traços. Era o seu passo, sua penumbra, aquela claridade assombrosa com que registrava o prazer. Aquele, das cartas.
Betina Mariante Cardoso