Croissants, Ainda Quentes
Betina Mariante Cardoso
Edimburgo, Escócia. Lynedoch Place. Letras em negro na placa sóbria. Uma lomba tênue. Em fileira, dez casas, todas iguais. Pedras de um cinza escuro, chumbo. A cor da cidade, se vê. Lado a lado, jardins particulares, portões de ferro, números pouco à vista, acima das portas brancas. Elegância lúgubre. À volta, um tom de sol, céu fosco. Um ar escondido.
Procuro o Bed & Breakfast de Susie e Andrew Hamilton. Aquela espécie de hospedagem domiciliar em que os donos da casa recebem toda sorte de visitantes para dormirem em seus cômodos. E, manhã cedo, idiomas e ofícios encontram-se na mesa da sala de refeições, em conversas sobre o tempo ou a geléia da confeitaria vizinha.
O motorista do táxi deixa-me ali, íngreme, com a bagagem.
-Deve ser esta a casa, ou a próxima. Tem o número?
Faço que sim, com a cabeça. De palavras, muda.
-É uma destas. Terá que procurar. Boa tarde.
Respiro. Aperto os olhos, na tentativa de fixar o número. Confiro com o registro a lápis, na folha de bloco. Lynedoch Place, 16. Aqui.
O portão já envelhecido, preso com um arame frouxo. Abro, trazendo meus pertences para o jardim. Arrisco uma escadinha, externa à casa, logo abaixo. Observo uma peça. Antiga, parece. Porta de madeira, única. Na maçaneta, o azinhavre. E na fechadura. Tento entrar, trancada a porta. A janela, graciosa, no ângulo. Cortinas claras, voal. Luz pouca. Insinuadas, sombras nuas. Mobília, quem sabe. Ou vestígios ainda quentes, de corpos.
Sem pistas, subo à porta principal. Presa por durex, uma folha branca dobrada, com meu nome.
-Cara hóspede, não pude esperá-la, lamento. Por uma urgência, fui ao centro da cidade. As chaves estão sob o capacho. A verde serve à entrada (porta branca), chave geral. A cinza abre a segunda porta, de vidro. Abrindo-a, deverá descer ao andar inferior, onde há vários cômodos. Seu quarto será o último à direita. Retorno às 17hs, espero encontrá-la. Temos leite e frutas na geladeira, fique à vontade. Atenciosamente, Susie Hamilton.
Levanto o capacho, estendido rente à entrada. Sim, as chaves. Duas, a verde e a cinza. Verde, porta de entrada, branca, solene. Cinza, a de vidro, convidando ao interior da casa. Se bem que percebo uma terceira, menor, presa ao meu chaveiro. Não sei de onde é. Sem importância, acredito. Entro. Quartos sem fechadura, minha maçaneta presa por preguinhos frouxos. O único cômodo trancado é a peça de baixo, acesso externo, pelo jardim.
Móveis de estilo, aconchego. Cores quentes, perfume de casa. Um carpete de pisar silencioso. Sons abafadiços. E ninguém. Saio à rua. Segunda-feira, 16:15, pelos relógios do comércio local. Tudo na cidade parece silente. Trajes sérios pelas calçadas, poucas vozes. Retorno ao Bed & Breakfast.
Uma camareira, avental rosa pálido, me recebe. Perguntas, listas, orientações, ressalvas. O horário do café da manhã, se bacon e ovos. Ausente a dona da casa, e já passa das cinco da tarde. Ao fundo, atmosfera intocada. A perfeição do estático, nem o pó em movimento. Me aborreço. Nada acontece. Pelos andares, adornos simpáticos e convidativos, em pouca vida.
Todos os quartos ocupados, hóspedes em passeio ou a negócios, explica a moça de rosa. 18:15, no belo relógio da sala de refeições. Peça de antiquário, escura, pêndulo cá e lá. O aviso do tempo, a cada hora. Ela me alerta, impassível:
-Deve sair para jantar. A cidade se apaga às 20hs.
À rua, caminho displicente. Sem mapa, percorro vias e praças. Alheia a tudo , passos em monólogo. Carrego as chaves comigo, e o endereço. Lynedoch Place, 16. Na bifurcação, à esquerda, a sexta casa. Estou na avenida principal, prédios altos, renovados. Na esquina, o Castelo. Contraste fulminante. Sigo, na estranheza do cinza. Dispersa, aquela névoa plúmbea.
-Sopa de aspargos e coca cola. Cinco libras.
Entrego as moedas à moça do caixa. O som do metal no balcão de fórmica me desperta. Ela sorri, compadecida de meu olhar entediado.
Falta de rumores, vento morno. Um crepúsculo laranja claro, paralítico. Sinto uma chuva rala, solitária. Poucos caminhantes. 20hs, imagino. Reencontro as chaves, dormindo na bolsa. Repito as etapas de abertura das portas. Abro a primeira entrada. Hora de dormir.
Sono leve, e o desconforto de uma cama estranha. Na fronha, aroma adocicado, produto de limpeza. Acordo, com a lembrança das frutas e do leite, na cozinha. Do bilhete na porta. Subo.
Sala de refeições, porta entreaberta. Conheci na chegada, à tarde. Grande, imponente, móveis escuros. A mesa, longa. O espaldar alto das cadeiras, as janelas em arco. E rumores, agora. Noite, uma hora da manhã. A conversa não respeita as paredes. Falam num escocês típico. Uma discussão em andamento, ouço apenas parte. Não consigo espiar.
Diálogo e pausas intercalam-se. Um homem esbraveja, em tom solene. Cada frase, um veredicto. Voz áspera, sotaque definido. Alguma presunção. Inquieto.
- Eram duas da tarde. Dormias. Lembro de ter visto as chaves junto às tuas roupas, caídas ao lado da cama. Bati a porta por fora, sem chavear.
Uma voz de mulher balbucia, trêmula.
-Sim. Acordei a tempo vestir-me. Tranquei a peça. Logo subi pela escadinha. Larguei a chave em algum ponto da casa, só pode ser.
Contemplam-se, imagino.
Ele ri, irônico. Escuto.
Ela, frágil. Titubeia. Pelo silêncio, construo a cena. Deve estar mirando algum ponto ao longe, esforço de lembrança.
-Fiquei certa de tê-las trazido comigo, no bolso do avental. Não sei onde ficaram.
Ele murmura algo, tom ríspido, burocrático. Olhar pungente, calculo. Então, de súbito, amacia a voz, denúncia do encontro das peles. Distraídos, encostam-se no piano, aberto. Fás e dós compõem sinfonia tórrida.
A porta, encostada, permite que eu apenas escute.
Fecham o piano, calados. Som seco, do tampo de madeira. Arrependem-se da aproximação ruidosa, àquela hora. Hóspedes dormindo.
Deixo para trás o assunto. Um copo de leite frio me acompanha. Abro a porta do meu quarto. Tinha esquecido o abajur aceso, na escrivaninha. Penso na cena. Ele, sotaque rouco. Ela, voz baixa, doclidade ambígua.
Dia seguinte, reconheço a voz do homem no café da manhã. O mesmo que, tarde da noite, clamava com insensatez. Serve-se de torradas e geléia, menciona o friozinho atípico neste início de verão. Dias sem sol, vento forte. Cedo, seis e meia. Comentários esparsos, como fazendo sala para mim. Poucos acordados na casa. Me indaga banalidades, entre os goles de café escuro. Ele, um. Eu, outro. Apenas nós dois, em cantos opostos da mesa. Sem assunto, ecoa o som surdo da faca passando manteiga no pão tostado.
Uma voz feminina, doce e maliciosa, arranha o silêncio, anunciando os croissants, ainda quentes. Num Bom-Dia distraído, as polpas dos dedos tocam o ombro do hóspede, amassam-lhe o colarinho, com alguma intimidade. De súbito, ela me perscruta, num sorriso cerrado, sem jeito. Não me sabia ali.
O senhor quieto, soberbo. Disfarça. Comenta a sempre adequada temperatura do café. Ela, uma senhora, seus cinqüenta anos. Desenho de cicerone cuidadosa. Rechonchuda, maquiagem demais para aquela hora da manhã. Apresenta-se a mim, com leve aperto de mãos. Susie Hamilton. A dona da casa. A família mora na cabana de trás, se eu precisar.
Sustenho o impacto. Eram as vozes da sala de refeições, noite passada. Susie, proprietária do Bed & Breakfast. Ele, um hóspede, cativo freguês, parece. Cenário tortuoso. O piano, o relógio, a cristaleira antiga, e muitas fotos de família. Ela e o esposo, ainda novos. Os filhos. Retratos do casamento. Fotos da Festa de Natal, há um ano.
Outros hóspedes ocupam a mesa, amenas saudações. Sons de louça, mastigares polidos. Chega a esposa, suponho. Um cheiro de talco e laquê, num coque recém-feito. Beija-lhe o rosto enquanto, complacente, passa-lhe a mão pelos cabelos brancos. Curva-se, expondo os seios mal cobertos, leve blusa de Organdi azul. Debruça-se por sobre o homem. Anúncio de propriedade. Ele, sisudo, destoa da imprudência da noite passada. Um Bom-Dia curto, interrompido pelo sorver do café. Ela às lojas, ele aos negócios, comenta a senhora, com fala estridente. Senta-se à mesa, a seu lado.
Saio. Com certa picardia, deixo um tom de segredo na chapeleira da entrada. Enfim, algum acontecimento.
A rotina da cidade gira. Durante o dia, passeios. Na casa, o tempo imóvel, à espera das chaves. Impossível o encontro furtivo. Perdeu-se o conjunto que abre a peça de sempre. A casa, que ontem parecia inerte, toma-se de ruído abafado.
Percebo ânsia na dona da casa, quando retorno no final da tarde. Indiscreta, encosto o ouvido na porta.
Na cozinha, ela arfa ao telefone, aspirando a própria voz.
-Quando saí da peça, pela tarde, peguei as chaves no chão, ao lado das roupas. Deixei-as no bolso do avental. Em seguida, tomei nas mãos outro chaveiro, para deixar à nova hóspede. Joguei no bolso, junto com caneta e papel, para o bilhete. Pus sob o capacho, por engano, nosso conjunto, o único que tem três chaves. E como pedir a ela, que hoje presenciou nossa aproximação, no café? Acho melhor termos cautela.
Apreensão. Susie ressente-se do descuido. Imagino, pelo tom de voz.
Com o que agora sei, toco no meu chaveiro, sem olhar. Sinto, então, a terceira chave. Aquela, menor. Fico surpresa. Por um equívoco, carrego, no compartimento interno da bolsa, a ocupação velada da peça de baixo. Esperam pelas chaves, que, sabem, estão comigo. Pedí-las, no entanto, pode parecer suspeito.
Lembro de como cheguei, ontem. O jardim. A escadinha externa. As cortinas claras, a mobília pouca, a luz apagada. O azinhavre, na maçaneta e na fechadura. Quem diria.
Alguns dias de silenciosa inquisição, entre saborosos croissants e goles de café passado. Entreolham-se, a cada manhã desejosa. Assisto à sombra dos quereres, circulando ali. As chaves, agora, minhas.
Uma semana. Largo o chaveiro na banqueta. É madrugada, o táxi me conduz ao Aeroporto. Com brejeira satisfação, deixo um bilhete, agradecendo a hospedagem. Voltarão a abrir a porta da peça de baixo, empoeirada. Mas só quando o dia acordar.